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sábado, 7 de setembro de 2013

Limbo dos Poetas - LISA E O VELHO DA RUA MILMMS - Parte III


Mais um sábado e mais um texto! Enfim, a ultima parte deste divino conto do Daniel Henrique. E, se você, você mesmo ai, de amarelo, deseja ver seu texto publicado aqui, é só nos enviar, através do e-mail adecadenciadoanjo@hotmail.com!



Presunto, Ovos, Manteiga e um Diário:
A receita médica que o Dr. Telles Theodor passara para as minhas tosses e dores musculares descansava sobre a mesa de madeira da cozinha.
Era segunda-feira ao crepúsculo e eu estava faminto depois de passar uma tarde inteira na fila de um hospital, de pé, seguido de cinco minutos relâmpago dentro do consultório de um adolescente que sequer olhara na minha cara, antes de decretar “Virose!”, e me mandar de volta para casa.
O médico estava enganado. Eles quase sempre estão, ao que minha memória consta.
O profissional que examinara meu joelho no Hospital do Exército, depois que eu fora mandado de volta para casa, na época da Guerra, me dissera que aquela balinha de nada jamais iria me incomodar. Pelo resto da vida, foi o que ele disse. Ando manquejando há mais de vinte anos. E ainda sinto dores ferrenhas à noite, quando é quase impossível dormir.
Não havia nada no armário, além dos biscoitos que Lisa não comera e das varetas de macarrão que forravam as gavetas.
Trotei mal-humorado até a geladeira.
Dois ovos e uma ponta de presunto me encararam com azedume, da porta.
Àquela época, eu ainda me perguntava por que não tinha morrido na Guerra, quando tivera a chance. Parecia alguma espécie de capricho do destino, para mim, sobreviver às chuvas de balas e aos bombardeios para chegar em casa e encontrar a minha família morta. Em cinzas.
A fumaça rota ainda subia dos escombros do edifício, quando virei a Rua Magnólia, a duas quadras da Milmms.
Não pude acreditar, quando vi. Se eu tivesse chegado quinze minutos mais cedo...
Nos anos que se seguiram eu desejei mais do que qualquer coisa morrer como eles. Cheguei a cogitar a possibilidade de tocar fogo no casebre velho onde habitava antes de me mudar para o n°. 5 da Rua Milmms, e descansar em paz.
Isso não aconteceu.
Não naquela noite.
Mas, como dizem, deve-se tomar cuidado com o que se deseja.
O meu desejo se realizaria em breve. Mais breve do que eu jamais imaginaria.

Os ovos, o presunto e a manteiga coalhada chiavam na frigideira, exalando um cheiro forte que subiu do fogão em ondas e inundou as minhas narinas insensíveis.
– Humm, parece bom! – murmurei pateticamente, enquanto misturava o arremedo de jantar com uma colher de sopa.
Pensei em Lisa, naqueles que seriam os últimos momentos de consciência de minha vida.
Como estaria agora? Onde estaria?
No porão, veio a resposta no silêncio. Lendo o livro que você deu a ela.
Não tive a oportunidade de contar a Lisa que aquele era um conto fantástico que acontecera de verdade – pelo menos na cabeça de um homem. Gostaria de dizer isso a ela agora, pois sei que ela é a única pessoa no mundo que não cresceu demais para acreditar em histórias assim. Em contos de fadas. Creio, contudo, que ela não se lembraria de mim: do velho a quem ela contava histórias todos os sábados, enquanto arrebatava uma xícara de chocolate.
Ramon Wesley combatera comigo. Vivia nas nuvens, aquele menino. Só hoje percebo que, na verdade, ele deveria ter algum tipo de problema. Algum tipo de problema psicológico, digo, uma vez que não é comum um adolescente forte e saudável ver criaturas de dois metros de altura semelhantes a uma águia quando está voando, com olhos por diante e por detrás, num rosto humano, perambulando por aí. Isso sem citar as mãos de dedos longos e finos, e as penas negras e sedosas, matizadas de verde-esmeralda e azul-turquesa.
Sim, Ramon Wesley vira essa criatura. Ainda me lembro de ouvi-lo descrevendo-a, com uma metralhadora ocupando as mãos, um cigarro atrás da orelha, deitado de barriga sobre a terra manchada de sangue enegrecido:
“Ela murmurou um agradecimento e me desejou boa-noite, antes de sair voando pela janela, Wagner, eu te juro”, era o discurso eloqüente dele. “Acho que estava feliz por eu tê-la liberto, quando abri aquele livro”.
O livro.
Até a noite em que morreu, destroçado pela bomba que destruíra meu nariz, Ramon falou do livro. Do modo como o encontrara dentro de uma caixa secreta no sótão do falecido tio, da história que contava: uma história semelhante à sua.
Pobre Ramon. Era só uma criança, mas logo percebi que sua insanidade era hereditária.
Tudo o que restara em meio às cinzas e detritos humanos fora seu diário e o solado de uma bota de combatente.
O solado da bota de Wesley.

Pausa para nota: Estava destruído, se comparado à saúde do diário, que permanecera intacto.

Agora o diário estava nas mãos de Lisa.
Eu não sabia ler, gostaria que ela tivesse contado aquela última história para mim...

† † †


Uma Heroína Em Meio Às Chamas:
Lisa Llibre voltava da escola, quando viu as chamas altas e crepitantes estalando dentro das cortinas do n°. 5 da Rua Milmms. Gosto de imaginar que, na hora em que viu o que estava acontecendo, Lisa soltou-se com urgência das mãos de Mimir Meyer e saiu correndo. Para dentro da casa.
Os moradores do bairro estariam apinhados na rua perante a minha residência, e o cheiro acre de fumaça e madeira esturricada estaria sendo despregado em grandes haustos, em direção ao céu, podendo ser vista há quilômetros de distância.
O corpo de bombeiros estaria parado na calçada e homens uniformizados de vermelho e cinza estariam desenrolando mangueiras gigantescas para apagar o fogo que derretia minha pele, grelhava minha carne, secava os meus ossos.
Mas não aconteceu assim.
A rua estava deserta. Ninguém assistia ao espetáculo. E Lisa Llibre relutou em entrar.
– Busque ajuda, Mimir!

Pausa para nota: Sabe, aqui onde estou é possível tomar conhecimento sobre alguns acontecimentozinhos que nos dizem respeito. Mas só daqueles que nos dizem respeito. Algo a ver com uma política de privacidade...

Meyer puxou o braço de Lisa.
– Não! Você vai se matar!
Ela se soltou dele, resoluta e decidida como nunca estivera.
– Eu tenho que entrar... eu tenho.
E entrou.
Por incrível que pareça, nos momentos de insanidade e dor cruciante que eu senti antes que o fogo me alcançasse, no exato momento em que vi o fogão explodir em uma grande língua de chamas que logo subiu pela parede e lambeu as vigas do teto, enquanto eu arquejava no chão, perdendo a consciência – eu pensei em Lisa. Na história que ela me contara. Em como ela se sairia sem a minha ajuda. Sem uma família.
Eu achei que não queria partir. Que queria ficar para ajudá-la.
Até hoje algumas pessoas (as que se lembram, naturalmente) pensam que o que me matou foi o incêndio.
Mas não foi.
Foi a velhice.
A falta de um lugar para mim naquele mundo.
O desejo – mesmo que inconsciente – de ir embora. Para casa.
De receber o presente.
Lisa segurou minhas mãos em meio às chamas, e eu pude observar, pela última vez, como seu corpo parecia pequenino contra a parede ao fundo. Frágil. Como um cristal fino.
Segurei suas mãos diminutas com força.
Lis...
Ela foi uma heroína, como eu disse que seria.
Lisa foi a minha heroína.

Eu vi a ambulância cirurgicamente branca virando a esquina, de algum ponto lá de cima.
Cirurgicamente branca em meio à fuligem de um incêndio e à sujeira de uma rua.
Ouvi o grito histérico de Lisa, que retumbou nas montanhas além e voltou para a Rua Milmms na forma de um lamento.
Ajoelhada na calçada. O rosto enegrecido. O peito arfante.
Aquele grito ficou gravado para sempre na memória dos habitantes da Rua Milmms.
O grito de uma louca.

† † †

Despedida:
Mimir tentou impedir quando os homens de branco vieram buscar Lisa na semana seguinte.
Defendeu-a com seus punhos serrados. Os dentes arreganhados. Deu chutes e socos.
Foi em vão.
Eles a levaram. Para um lugar melhor, como disseram.
Para o Sanatório Dr. Seward, onde Lisa teria uma coleção de livros e escreveria o seu próprio.
Aquele que contava a sua história.
Lisa teria o seu próprio diário, assim como Ramon Wesley e seu tio, antes dele.

Gostaria de afirmar que tudo o que aconteceu à pobre Lisa posteriormente não passava da imaginação fértil de uma criança.
Gostaria de imaginar que ela sequer me conhecera.
Mas não posso – afinal de contas, quem deu o livro a ela fui eu.

Uma última nota: A morte não é tão solitária como eu imaginava.


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