“O que quer o povo
afinal? O povo é um caos sumptuoso. Quer cantar? Dançar? Trabalhar? Comer? Beber?
Dormir? Copular? Sim, isso tudo, e mais? (...) São bifes do lombo em molho de
natas? (...) Talvez, um inverno menos branco? (...) Porventura, um céu com
amoras? Ou cavalos que mijem vinho? (...) Vou dizer-vos o que o que o povo
quer? Meus amigos e minhas amigas... O Povo... Quer... O Povo... Quer... (pausa prolongada)... Eles não sabem. É isso mesmo: ELES-NÃO-SABEM.”
(Um Piano Para Cavalos
Altos – Sandro William Junqueira)
As pessoas permanecem em silencio
porque não sabe o que dizer.
As pessoas estão insatisfeitas. Em
todos os lugares, em todas as classes sociais, em todas as idades, as pessoas
estão insatisfeitas. Elas sentem que
algo está errado. Elas olham para o mundo, para a sociedade, e veem que tem
algo errado ali. Que algo tem que mudar.
Que o mundo tem que mudar. Em algum momento da vida, elas vão perceber que
obedecem a padrões, que devem estudar, que devem ter um bom emprego, que devem
seguir a moda; vão perceber que precisam fazer isso para se alimentar, para
alimentar suas famílias, seu animais de estimações, alimentar seus vícios, suas
vaidades, seus medos... Perceber que não são livres. Que estão sempre com algo
faminto dentro de si que deve ser alimentado. Que são escravos dos monstros
insaciáveis que são elas mesmas.
Mas pergunte a essas pessoas que
sabem que algo está errado: qual é o
problema? Qual é o grande problema? O
que faz com que o mundo seja desse jeito? Por que as coisas são assim?
Elas não sabem.
Tem uma coisa que faz parte do
ser humano, que é a busca por respostas. E as respostas estão em todo lugar. Em
tudo o que está explícito, há respostas. Na religião, o que está errado é o
diabo. Na família, o que está errado é o comportamento do filho. Na escola, o
que está errado são as notas. O trabalho, o chefe. Na sociedade, a corrupção. Na
natureza, o aquecimento global. Esses são os problemas que todos enxergam,
esses são os problemas que são apresentados às pessoas. E todas essas respostas
são superficiais. Elas servem para deixar as pessoas ocupadas.
Não se enganem: há sempre um
problema colocado à frente das pessoas para que elas se ocupem e não tenham
tempo para procurar a resposta do “o que
está errado?”
Para os religiosos, todos devem
rezar para formar um mundo melhor, e eles estão fazendo sua parte. Para os
ativistas políticos, todos devem lutar para o governo ser mais honesto, e eles
estão fazendo sua parte. Para os ambientalistas, é preciso que todos cuidem do
meio ambiente, e eles estão fazendo sua parte. Todos eles creem que estão fazendo a sua parte. Acontece que fazer
a sua parte não existe. Captem isso: FAZER
A SUA PARTE É UMA ILUSÃO!
A sociedade está fragmentada em
grupos. E são muitos grupos. Religiões, tribos urbanas, gerações, classes
sociais, preferências políticas... As pessoas estão divididas. Cada uma
acredita em uma coisa. E então quando você pensa: “Vou fechar a torneira
enquanto escovo os dentes. Todos devem fazer isso. Se cada um fizer isso, o
mundo será mudado. Eu estou fazendo a minha parte.”, você está fazendo o que
você acredita, mas não existe essa história de se cada um fizer isso, porque as pessoas não vão fazer. E, mesmo se
fizerem, o mundo não vai mudar. E sabe por quê?
Porque as pessoas estão
divididas. Porque não há uma única ideologia vigente em nossa sociedade
ocidental capaz de unir todas as
pessoas do mundo em prol de uma única causa. Nem mesmo o cristianismo é tão
forte. Nenhum partido político convence a todos. Há sempre quem vai criticar
isso.
Então, o que está errado? O que
está errado no mundo? Que direito eu teria de dizer que o que está errado são
as pessoas?
Não é. As pessoas continuam não
sabendo o que está errado. As pessoas não tem culpa.
O povo é instável demais para fixar-se
em algo, fragmentado demais para unir forças em prol de uma causa.
O povo está perdido.
E quem o encontrou foi o
capitalismo, que dividiu o povo em pequenos grupos que não sabe o que quer, e
deu a cada grupo uma causa fútil pela qual lutar. Sim, fútil. Todas as causas são fúteis.
As pessoas sabem disso. Elas
sabem que não mudarão o mundo e se conformam com isso. Contanto que possam
mudar de vida, tudo bem. Tudo bem.
Tudo bem?
Não é para todo mundo que está
tudo bem. Há quem queira mudar o
mudo. E para essas pessoas que querem mudar o mundo, também há ilusões, também
há problemas que lhes são apresentados. E que são absorvidos por eles. Causas falsas
pelas quais lutar.
Como o Mensalão, por exemplo. Ou as
inumeráveis campanhas contra a Rede Globo. Ou as campanhas contra Marco Feliciano
e Renan Calheiros. ou a PEC.
Se o governo fosse bobo, não
estaria no poder. Aquelas pessoas que estão assistindo a novela, vendo jogo de
futebol e agradecendo o Lula e a Dilma pelo Bolsa Família não preocupam a
ninguém. Não preocupam ao governo. As pessoas que preocupam o governo são aquelas
que querem lutar contra a alienação. E eles sabem que programas de TV e
reportagens não resolverão isso. A única coisa que pode ser entregue a esse
grupo de pessoas que querem mudar o mundo, é uma causa. Uma causa capaz de
acender nessas pessoas o fogo da revolta e então consumir esse fogo por
completo.
Um deputado racista e homofóbico
seria perfeito para isso. Seria um dedo na ferida capaz de atrair todos os
olhares e consumir todas as chamas revolucionárias até que elas parem de
queimar. E então essa causa vai perder toda a força. Nenhuma dessas falsas
causas termina em alarde, como a grande Revolução Francesa, ou a Revolução
Russa, que se tornaram inesquecíveis. Não, essas falsas causas, depois de
gastarem toda a energia do povo, acabarão por si mesmas, perderão a força,
serão ridicularizadas, serão desmoralizadas, serão esquecidas. Esquecidas até mesmo pelos próprios adeptos.
E é assim que acaba. Foi assim
com a SOPA. Foi assim com Renan Calheiros. Está sendo assim com Feliciano e com
a PEC.
E no final não há solução. Porque,
depois de consumir todo o seu fogo, as pessoas continuam sem saber o que é que
está errado.
As pessoas permanecem em silêncio,
porque não sabem o que falar.
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Esta Carta pertence à coluna Mais de Mil Cartas Antes de Dormir |