Texto feito em parceria com o Lucas Rodrigues, ex autor da Decadência. |
[HUMBERT]
Restou somente o sabugo, Juliete.
Fiquei assim jogado, desamparado por você que só sabe ir embora e me deixar
no abandono na minha própria falta de serventia. Porque sou somente um sabugo,
Juliete. Um Visconde sem valor e inteligência – sem nobreza, sem amor, sem céu:
sem glória.
Restou-me, Juliete.
Restou o que você não quis abraçar com seus braços sufocantes. Desse nosso
amor (amamos?) sobrou a espiga seca e putrefada, jogada em um beco qualquer, ao
relento, ao tempo, sendo chutada pelos transeuntes que no fim fazem a mesma
coisa que você: descartam. Pois há quem diga que o mundo é feio de movimento,
eu digo que ele é feito de despedidas – abandonar a infância, a adolescência,
os sonhos e a própria vida.
Mas dos meus lábios você não ouvirá nem o mais simples adeus – não sei
deixá-la.
Meu adeus é também ficar.
[JULIETE]
Como eu poderia, Humbert? Como eu poderia não esgotá-lo até o sabugo? Ouça
– é o vento que bate no teu reino, sacudindo teus milharais. Mas eles são seus?
Acho que você é o Humbert errado. Acho... Ouça! – é de você que vem o vento que
afaga meus cabelos. É de você! O vento que me afaga, que me refresca, que me
esfria, que me arrepia. O que eu vou querer de um sabugo, Humbert? Mas ele é
você? Acho que você é o Visconde errado.
Acho que está tudo errado, Humbert, está tudo errado com a gente, mas eu
não sei dizer o quê! Não fui eu que nos esgotei, Humbert, acho que o espantalho
não funcionou, o espantalho não espantou os corvos – eles nos devoraram, nos
devoraram e diziam “nunca mais”. Eles estão errados ou nós não seremos nunca
mais os mesmos de antes? Não seremos nunca mais as crianças que roubavam doces
nos jantares de família e se escondiam na copa das árvores e liam O Pequeno
Príncipe e treinavam ortografia com troncos de árvores e facas furtadas e
que... e que... que mais Humbert? Que mais nos foi devorado?
[HUMBERT]
Nem liga Juliete.
Ignore o vento e a desesperança: só os corvos importam. Não os espanto; eu
gosto quando eles devoram. Tenho-os como amigos, mesmo que eles machuquem mais
do que você, mesmo que eles sejam somente tatuagens na minha pele que você não
procura mais no cinza do nosso quarto cinza – na lama do nosso caos, do nosso
desarrumado organizado pela nossa preferência e pelos dedos ágeis de Johnny.
É isso que dizem que é se sentir bela metade....? Ah, sinto-me assim desde
que nasci, como se tivessem me arrancado algo para moldar você. Sou fruto, você
é a semente. Floresca, Juliete! Cresça pelas gramíneas do meu milharal morto
porque eu como espantalho sou mais inútil que escritor – um escritor que odeia
palavras e um espantalho que sorri aos corvos.
Dê milho aos corvos ou pérolas aos porcos, não importa, o desperdício é o
mesmo.
E o desperdício sou eu ainda tentar viver fora de você.
[JULIETE]
Não se preocupe, Humbert – eu não ligo. Há, por acaso, um belo mais belo
que o belo do bico de um corvo a arrancar todas as suas palhas de espantalho?
Deixe que o corvo lhe retalhe, ele puxa sua pele em câmera lenta, ele devora
minhas entranhas em câmera rápida, ele na verdade somos nós, então por que usar
a terceira pessoa? Poe quê? Oh,
Humbert, consegue domar o meu sadismo? Devora-me. Pedacinho por pedacinho,
devora-me e deixe só o sabugo. É só o sabugo que importa, é do sabugo que veio
o Visconde, e é do sabugo que veio você, que é o Visconde errado e é o Humbert
errado. E se fosse o certo eu nem lhe dirigiria o olhar. Mas eu dirijo, de
soslaio, tão a troco de nada que nada que sigo minha vida e te deixo aí para
ser devorado, porque meu espantalho não conseguiu te proteger.
Eu não vou dizer que não te salvo porque não posso. Eu não vou dizer que
não te salvo porque não quero. Eu não sei por que não te salvo, mas eu não te
salvo, Humbert.
[HUMBERT]
Você se lembra de que existe algo seu que vive no meu limiar? Algo que me
consome aos poucos me devora tal Caetano. Tal os corvos devoram meu corpo de
espantalho que não sabe espantar. Scarecrow.
O assustador de corvos é quem se assusta, na verdade. Não com o seu sadismo,
não com a sua maneira de me deixar a mercê de meus próprios fantasmas – que no
fundo são aqueles que viviam em você. Assusto-me com a crueldade em que permito
mutilar-me. Marco-me para a eternidade com as chagas do Nosso Senhor Pecador de
Nós Mesmos.
Sou santo em matar-me em nome do nosso amor que nunca existiu? Sou demônio
por gostar de gostar sentir dor. Não. Vai. Passar. Dói, sempre vai doer. Porque
os corvos no fundo não querem atacar o milharal – eles só querem o espantalho.
Só querem rasgar a palha – e você sabe disso mais do que ninguém, Juliete.
Você também é corvo, assim como eu.
Junte-se assim nessa festa de autoflagelação e vamos esquecer que somos os
sabugos largados ao chão, sem importância e utilidade. Já fomos milho, hoje não
nos resta nem os bagaços. Já fomos nós, hoje somos somente você. Então dance
comigo querida, dance enquanto seu mundo é caos, meu mundo é caos, mas o caos
ainda é ordem! Dance nossa marcha funebre de quartos cinzas e batida constante
enquanto o violão acompanha a voz rouca e a TV só está ligada para analisarmos
a fotografia do nosso filme em preto-branco-e-eu-não-sei-dançar-com-você.
Nem o sabugo restou.
[JULIETE]
Corvos. Que importam os corvos? Que importamos nós? Eu sou um passarinho
preto num jardim com florzinhas. Vamos ler a bíblia, Humbert? Talvez sejamos
salvos – só assim.
Mas não quero deixar o sabugo. Deixar o sabugo é admitir que falhei. Porque
o que quero de você está nas suas entranhas, está no fundo profundíssimo,
daqueles que não se alcança sem antes retalhar cada
pedaço do que o cobre, porque cada fragmento de tecido seria capaz de ocultar,
então cada fragmento de tecido deve ser eliminado. Esse sabugo esgotado e
exposto é você, Humbert? Ou sou eu? Não sei mais a diferença. Acho que cheguei
(ou chegamos? Ou só você chegou) ao ponto em que nada fica muito distinto, como
você não se distinguir de mim e não se distinguir de nós e não nos distinguirmos
de corvos e não sabermos distinguir corvos de espantalhos. Quem devora? Quem é
devorado? As vírgulas fugiram no primeiro bater de asas. A sanidade, a lógica,
a cronologia, tudo, tudo. Nenhuma dimensão restou para contar estória (assim,
com ‘e’, porque história com ‘h’ não interessa, história com ‘h’ nunca é
verdade).
A verdade é a pior das mentiras, Humbert. E nosso amor é a pior das
verdades.
[HUMBERT]
E nossas mentiras o mundo já engoliu.
E nossas mentiras o mundo já engoliu.
Feito para o Céu Literário. O tema deste mês é milho (isso mesmo). Você pode conferir outros textos com o mesmo tema aqui e aqui. |