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domingo, 7 de julho de 2013

Alma de capitão (.De capitão) pirata

 Alma de capitão (.De capitão) pirata 

“O problema de ser o último em qualquer coisa é eu aos poucos não restará mais ninguém.”


A paisagem era simples. Um pequeno casebre de madeira. Ficava numa praia isolada, de tudo e todos. De um lado apenas areia, do outro as rochas. Dentro da casa, havia objetos por sobre uma mesa. Uma concha, um crânio, uma espada, uma bússola, uma lâmpada, um jarro, alguns livros e alguns instrumentos musicais.. Eram objetos antigos. Com história e pequenos resquícios de alma de pirata. Hoje, as ondas banham a areia. Dóceis. Mas quando os piratas eram mais que resquícios de almas em objetos antigos, as ondas rebentavam nas rochas, furiosas.
É comum dizer que os piratas eram donos das ondas, mas não pode haver pior mentira. Sempre foram conquistadores, rei de seus barcos, por sobre águas selvagens, e estavam para as ondas muito mais como inimigos que às vezes se entendem do que amigos que as vezes se desentendem.
E assim como as ondas eram inimigas dos barcos, os piratas eram inimigos entre si. Anne, capitã do Concha divina era tida como Deusa em seu convés, e como puta no Convés de John, do Amantes das ondas – reza a lenda, tão mentirosa quanto a outra, que havia em seu navio um jarro de vinho, misturado a água salgada, que fazia com que as ondas se curvassem sob a vontade do capitão.
Já Salazar, o infernal, demarcava seu território com o som de seu terrível alaúde acompanhado pela voz de cem cantores escravizados, a corneta de seu imediato e a flauta de seu contra-mestre, em canções que narravam as atrocidades que nunca havia feito com Stewart, o estrategista, conhecido por anotar suas batalhas,primeiro a usar artifícios como lâmpadas e bússolas em alto mar.
Apesar de tudo, nem sempre a recíproca era verdadeira. Ainda que Anne quisesse todo o mar para si,  Joe a amava, tal qual amaria qualquer mulher com tino e coragem para comandar um vazio e assim como odiava qualquer homem que se atrevia a tentar domar as mesmas ondas que ele, e os caçava implacavelmente sempre precedido por seu apelido, “O Envenenado”. Apelido injusto, por sinal. Rezava a lenda que sua espada era envenenada, mas hoje se encontra no casebre, cega. Tão mortal e venenosa quanto qualquer outro dos itens.
E por ultimo Jack, o sem nariz. Apesar de não ter nariz, tinha faro para a desgraça.  E isso o fazia saber exatamente quem evitar ou o que, já que os inimigos de um homem do mar nem sempre são outros homens do mar. Sua tripulação e frota cresceram, ao longo dos anos. Ia recrutando náufragos e ex-tripulantes de outros barcos, sempre pautando suas decisões em pura intuição. O primeiro dos dominadores marítimos a cair foi Stewart.
Ele podia e tinha tudo o que um humano pode ter a seu favor, exceto o sobrenatural. Seu plano para a tomada da tripulação e dos conveses do Jack não contava com a súbita mudança de outras inimigas sempre presentes em disputas piratas: as ondas. Foram estas que deram fim a quase todas suas histórias e seus instrumentos, excetos os que se encontram sob a mesa.
Já as desgraças de Joe e Anne fora apenas assistidas por Jack, a distancia, como não poderia ser diferente, já que ele farejou o que aconteceria naquele local, sabe deus como. Foi retaliação, e não uma disputa que os levou ao óbito. Anne cansou de ser perseguida em seu território pelo envenenado, e ainda que com menor contingente e menos armamento, decidiu partir para a batalha.
A manteve a seu favor por um bom tempo, em que Joe simplesmente se recusou a dar ordens à tripulação de atacar a frota de sua amada, mas um dos marujos tomou sua espada e seu comando, fazendo com que a verdadeira batalha se iniciasse. A essa altura estavam ambos os capitães em pés de igualdade, e a batalha só findou quando as ondas passaram a recolher os restos dos navios, e os poucos marujos que restaram de ambas as tripulações eram acolhidos ou rejeitados no “Traidor amaldiçoado”, tendo bens como munição, armas, tesouros e outros como uma espada e uma concha confiscados por Jack, em troca de um esfregão e um balde, para limparem o convés.
E então, o ultimo embate entre os últimos piratas donos de um pedaço de mar já grande demais para eles, longe demais de qualquer cidade a ser saqueada. Um embate que, em verdade, ambos temiam vencer, mas apesar disso, piratas temem mais ainda perder seus navios que qualquer coisa, e por isso a guerra é necessária. Sim, guerra. Com direito a traições, muita pólvora e ondas tingidas de sangue. Ondas essas que, presentes em tantas batalhas entre os dois, sem outro vencedor que não elas, apenas assistiram, o fim de Salazar, ele e cada um dos membros do “Coral demoníaco” serem dizimados e terem seus instrumentos tomados pelos comandados do terrível Jack.
Jack se transformou então em Jack, o ultimo ainda que relutasse em aceitar a alcunha, na esperança de achar algum inimigo além das ondas. Ondas. Ainda que tivessem estraçalhado inúmeros navios, fossem terríveis em tempestades, são só isso. Apenas ondas, com sangue de pirata, mas sem alma de capitão.  Alma essa que só restava em Jack, motivo pelo qual nunca sofreu motim, mesmo decidindo por continuar a vaguear naquelas águas inférteis.
Por fim, ele decidiu que já não valia navegar se não pudesse exercer seu oficio, tomou um navio e rumou para costa, navegando sozinho e as poucas batalhas contra as ondas eram a parte mais tediosa da viagem. Não levou nenhum marujo consigo, mas todos os objetos recolhidos ao longo das desgraças que seus olhos tinham testemunhado.
Construiu, na praia, uma casa de madeira. Não madeira do navio, jamais ousaria, podia ter abandonado o mar, mas ainda era o Capitão Jack, o em nariz. O navio foi entregue as rochas, como desejavam as ondas. Jack manteve guarda em sua casa o resto da vida, aguardando que pudesse enfim se reagrupar no inferno com seus inimigos. Jack morreu há muito tempo, e hoje a maior parte de seus ossos, tais como outros tecidos não se encontram mais na casa, sobre a mesa. Sua única parte que resistiu, foi o crânio, tal quais os objetos de Anne, Joe, Stewart e Salazar. Todos mantidos intactos graças à história. Graças aos resquícios de alma de capitães piratas.

Mais um texto escrito para a iniciativa do céu literário, que conta com grupo e fanpage no facebook. Os temas foram guerra e inverno e contou com as participações de Huirian, Mara, Lucas e Daniel.

Comentários
4 Comentários

4 comentários:

Huirian disse...

"Bebei amigos yohhow!"
Pra ser sincero, mesmo sabendo o quanto você escreve bem, fiquei meio cético com o tema "pirata", mas 'véeeio' ficou ... lindão!
Parece até que você narrou o fim 'daquela franquia de filmes do caribe'. gostei.

Coletivo Poesia Marginal disse...

Agradeço seu elogio, apesar de não ter construído o texto em cima da frase do Barbosa, achei que ela definitivamente casava com este conto.

Herica Black disse...

Comecei a escrever um conto sobre piratas há alguns dias, mas agora lendo aqui até me deu vergonha de terminar. .-.

Coletivo Poesia Marginal disse...

Que isso, Herica!
Tenho certeza que ficará excelente e anseio por lê-lo n'O reino perdido!