Presente de aniversário do Lucas, por Gilson (Richard) e Érica (Juliete) |
[RICHARD]
Humbert, olha só, sou
independente. Sou livre pra voar hoje, estou só acorrentado à minha alma e
algumas lembranças que encontrei num baú. Fui ao sótão hoje, embora tivesse
jurado a mim mesmo não fazê-lo (nunca cumpro as promessas que faço a mim mesmo)
para encontrar algo de vinte um anos atrás. Lembra-te, Humbert?, aquele
inverno?, o berro inocente de alguém que chorava por conhecer esse mundo tão
frio e doente ecoava pela sala..., se lembra?
[JULIETE]
Baús velhos são uma merda, Humbert.
Quis queimar tudo o que tinha no baú que Rick encontrou só por não ter a
possibilidade de voltar no tempo. Afinal, de que serve o passado se não podemos
voltar nele? Anos e anos da lembrança de que o homem ocidental precisa chorar. As
pessoas nas fotos parecem tão grandiosas, não é?, eternas em sua felicidade ou
tristeza ou seja lá o que é que tenham na hora. O resto é tudo muito líquido,
então acho que só as fotografias são capazes de desafiar o tempo.
[RICHARD]
As fotografias são amantes da péssima memória, são minhas amantes. A
gente acaba por se prender num tempo que já passou. É a forma mais ridícula de
se desafiar o tempo que nos fode lentamente, mas já é uma forma. A foto que
achei no velho baú, Humbert, narrava um nascimento. Algumas pessoas no
hospital, um guri e um puta de um sorrisão estampado na cara de uns presentes.
Essa era uma foto grandiosa embora triste (a vida não é feita só de sorrisos,
Humbert); sei que Juliete vai discordar de quase tudo que eu disser, mas não me
importo; não agora. Fotos são decadentes, mas é o bolsão de tempo que temos e
aquela trazia toda a vinda de um mundo perfeito para o sofrimento; nascer é dor
tal qual é viver; não melhora, é decadência pura viver, mas estamos vivos nesse
momento. Pra nossa sorte ou azar, estamos vivos.
[JULIETE]
Oh, não! Não são decadentes, as
fotografias. Talvez a nossa imagem nelas o seja, mas não elas – elas não tem
culpa de sua melancolia, Rick! É que as coisas velhas e eternas causam um
incômodo nostálgico, algo meio que como uma tentação e a gente não sabe mesmo
descrever. Mas olhando pra essas fotografias que datam desde o nascimento até o
resto da vida, qual dessas você desejaria ser? Creio que gostaria de ser aquela
que só captura a paisagem, no meio de uma estrada que não me lembro qual é,
tirada numa viagem a algum destino que também não me lembro. É essa imagem que
eu gostaria de ser, de estar, assim, tão calma! Sem sorrisos verdadeiros ou
falsos, nem choro, nem melancolia. Sem reflexões sobre como a vida vale a pena
ou não, porque eu gosto do fato de você viver, Humbert, e gosto de que seja
assim, procurando em outras terras alguém que o compreenda, porque assim nos
conhecemos e assim estamos escrevendo isso.
[RICHARD]
O eterno e o imutável incomodam: isso é bem verdade, Juliete. As
fotografias me deixam letárgico, pensativo e nisso eu creio que o ser, sem
complementos, me bastaria. Creio que existir somente me basta: chego a dizer
isso todos os dias para me iludir, sem efeito. Gostaria de não ser, de
inexistir. Mas isso seria calmo demais. Não gosto de coisas calmas, me turvam a
visão ao tentar enxergar um sentido pífio para a vida. É como tentar enxergar o
fundo do mar quando ele está calmo: perde o sentido da palavra ‘tentar’; depois
que se consegue, qual o sentido? A vida se torna morna e calma, e tudo que é
calmo é assustador; não sabemos o que se esconde na quietude. Gosto do barulho
para contemplar meu silêncio; gosto do caos para achar a minha ordem; gosto de
existir para saber a minha inexistência. Acho que sou confuso, fujo muito, mas,
não sei do quê. Talvez do meu reflexo, talvez do passado por quem sou apaixonado
e, ao mesmo tempo, amedrontado. Sei lá, Humbert; é esquisitice isso, mas esse
sou eu. Creio que vá compreender.
[JULIETE]
Pois eu sou o contrário: eu sou o
caos. Como você ama dizer, Humbert, eu sou caos. Você está certo. E mais caos
só me faria confundir os sentidos. Você não, Humbert, você, como Rick, é um
lago de águas paradas, cristalinas, rasas. Vocês são tão fáceis de enxergar,
mas aí faz parecer que sempre há algo que ainda não vimos. O que se esconde por
trás das suas águas cristalinas, Humbert? Acho que elas podem guardar um
vulcão.
[RICHARD]
Vi algumas fotografias
preto e branco, vi minha vida passar sem cores, um tom de sépia aqui e ali; o
resto, sem cor. Acho que às vezes é preciso largar tudo para colorir um pouco
as nossas vidas. Mais uma coisa que não consigo engolir, não me desce à
garganta: viver uma vida em tons de sépia. Sépia é broxante, é deprimente. É um
tom de nostalgia, mas é um tom ruim, sabe? As fotos que guardei, Humbert, foram
recordações boas. Aquelas que queríamos, no momento, ser deuses (sem a
imortalidade) para fazer aquele momento eterno: congelar Paris inteira só para
aquele tempo não acabar. Éramos felizes e não sabíamos de nada; vinte um anos,
Humbert e ainda estamos aqui. Estamos vivos. Acho que isso é tão importante
quanto um aniversário.
[JULIETE]
Sim, éramos felizes e não sabíamos,
e digo mais: éramos felizes porque
não sabíamos. Éramos crianças vivendo de bolas de neve, mas não queríamos que o
inverno congelasse Paris para sempre, porque sabíamos viver na primavera
também. Nota a diferença? Não sabemos viver todas as estações, e por isso
queremos que o inverno congele o tempo para ser eterno um momento que na
verdade era um momento comum, mas pelo menos sabíamos vivê-lo. Você sabe como
viver esse momento, Rick? Você sabe viver esse momento, Humbert? Você sabe
viver?
Viva comigo, Humbert, mais um
ano. Não precisamos congelar nada, os tempos líquidos são os que nos ensinam a
viver.