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domingo, 18 de agosto de 2013

Cartas para alguém

 Cartas para alguém



“Índia, 18 de abril de 2014.

Saudações, Lisa!

Olá, minha amada! Como está? Já chegou à Austrália? Já viu algum Canguru? Pergunto-me se já sentiu minha falta. Sim, me pergunto. Assim como todas as perguntas iniciais são – ainda que para você – para mim, essa também é. Você sabe que sempre fui curioso. Minha curiosidade me leva a questionar, mesmo que minha única certeza seja a de que não receberei respostas. Isso me fez – e me faz – desperdiçar minha vida estudando religiões. Nunca saberei quais costumes seguir, ou qual Deus me salvará da morte e da vida, mas ainda assim pesquiso sobre cada um.
Como você bem sabe, isso que me trás aqui. Desbravar a antiga índia, e sua riquíssima cultura. Cultuar seus animais e me purificar com seus rituais. O que me faz nunca ter certeza é algo intangível, algo que não posso mudar, tal o que faz das minhas perguntas a ti perguntas a mim. Não posso mudar a palavra dada, Lisa. Prometemos que não enviaríamos cartas, e ainda que eu anseie para te ver quebrando a promessa, não a quebrarei eu. Tivemos nossos motivos, é verdade. Não poderíamos atravancar os sonhos um do outro, não é mesmo? Iríamos ambos para Terras de amores impossíveis, ainda que só para nós.
Eu sempre fui um homem de palavra. Você sabe disso e conhece o que vou contar, mas uma vez que a carta não chegará até você, não preciso me preocupar em ser repetitivo. Lembra do nosso quase casamento? Trai toda minha falta de fé por você. Trai também minha paixão por trajes aconchegantes, mas não pude trair meu compromisso com a verdade. Não fui capaz de responder sim ao padre. Eu não sabia se estaria contigo em todos os momentos, e graças a isso tomei a verdade como esposa e você como amante. E graças a isso, somos dois realizadores de sonhos, Lisa. Ou ao menos eu sou. Queria saber se você também o é...

Com Carinho, o covarde do teu marido.”

“Índia, 18 de junho de 2014

Amada Lisa,

Dois longos meses separam esta carta da outra. Longos e maravilhosos meses, embora este não seja um dos melhores dias. Não vale citar o que me causa tristeza. Talvez você pudesse argumentar que vale, mas no caso de não receber a carta, creio ser inviável e, nesse caso, voltemos um pouco aos dois meses passados. Já citei que foram maravilhosos, não é?  Tanto faz, na verdade. Aprendi que não é redundância quando é de propósito: ganha status de figura de linguagem.
Bem sabe que estudei inúmeras religiões, sempre as escolhendo por um motivo, com a hindu não foi diferente.  As divindades estão entre nós, amor! Em todas as outras culturas anteriormente estudadas os deuses estão em seus Céus, Montes Olimpos ou salões de Asgard, aqui não, minha querida, eles estão na rua. Ao contrario dos outros, que usam parábolas, malabarismos teóricos e metáforas, alguns dos deuses deste magnífico país simplesmente cagam e andam para nós, nas ruas, da forma mais literal possível.
Confesso que estou entrando nessa aventura de corpo e alma, minha querida. Agora cultuo a vaca, e não a carne em minha grelha. Quem poderia imaginar que eu não estaria com ela na saúde e na doença, não é mesmo?  Embora a parte da vestimenta seja simples, hoje este doti está me incomodando. Tenho um casamento mais tarde, mas minha vontade seria ir de bermuda e regata. Sei que você me apoiaria, mas como pode se nem mais me lê?

Atenciosamente, seu amante.”

Índia, 15 de Julho de 2014

Lisa,

Inicialmente a ideia era escrever trimestralmente. Seria o suficiente até mesmo para um livro, quanto mais para desanuviar minha mente. Provavelmente o livro nunca seria publicado, nem mesmo por uma editora de bairro. Não que você – ou eu – tenha algo contra, mas vou parar de divagar. Bom, não aguentei os três meses, mas achei que dois era uma quantia razoável.
28 dias depois, estou eu aqui. Tentei completar ao menos um mês, mas é impossível, de forma que escrevo essa carta torcendo para que escrever cartas não se torne, com o tempo, meu único oficio nesta terra abençoada, que tem tanto a oferecer, ainda que não possa te oferecer. Não pode me oferecer nem você e nem carne, é verdade, mas em que outro lugar eu poderia ver mulheres belíssimas de sari?
Acho eu cada vez mais tomo consciência de que estas cartas jamais chegarão à você e me permito falar coisas das quais não falaria. Confesso, além disso, que prefiro o clima daqui. Ainda que sempre tenha te dito o contrario, odeio o frio com todas minhas forças, e o calor indiano é apaixonante. Isso e as pessoas a cada esquina, cada uma com sua própria vertente religiosa. Tantos encantos a descobrir. Tantas Índias a conhecer. Fico por aqui, na esperança de me demorar ao menos quinze dias antes da próxima carta.

Aguardando sua quebra da promessa, Vitor.”

"Lisa,
Dois dias, foi tudo que aguentei antes de escrever esse bilhete.
Beijos, Vitor.
17/07/2014"


"Índia, 25 de Julho de 2014

Pela última vez, Lisa,

Esta é a ultima vez que escrevo uma carta endereçada a ti e não te envio. Considerando que já prometi que não te enviarei cartas, é a última vez que te – me? – escrevo. Cansei das mesmas perguntas, minha cara. Qual a necessidade delas, eu te pergunto?
Qual a necessidade de estar na Índia se tudo o que faço é escrever cartas e bilhetes a ti? E já começo essa carta me traindo: mesmo que eu cumpra a risca minhas palavras, as cartas continuaram a surgir mentalmente, enquanto tento em vão pesquisar a cultura deste local.
As favas com o Taj Mahal. Não quero saber de sua história, do romance por trás dele, do sonho abortado, não quero saber nem mesmo se qualquer uma dessas coisas é verídica ou, ao menos, faz algum sentido. Minha vida deixou de ser verídica e fazer sentido quando comecei a escrever as cartas. Ou isso.


Pela última vez, Vitor." 

“Índia, 01 de Agosto de 2014

A qualquer um que não a Lisa,

Nesta carta te trago apenas dúvidas. A primeira: a quem desejei enganar com todas estas cartas? Certamente não a você. Porque eu tentaria te enganar com cartas que eu não te envio? E porque te pergunto coisas se eu mesmo terei de responder? Porque ainda te escrevo a mim?
[...]
Por que tenho necessidade. Já havia descoberto quando comecei a escrever essa carta, e provavelmente as outras, mas agora, seis horas depois, admito isso para mim.
Não posso trair minha promessa, de não lhe enviar essas cartas, mas posso trair meus sonhos, mas precisamente meu sonho da Índia, de dominar sua religião. Posso enfim descobrir que meu sonho nunca foi descobri-la, mas sim te descobrir. Posso enfim prometer ama-la e respeita-la, na saúde ou na doença, na Índia ou na Austrália.
[...]
Por algum motivo, ainda me importo em terminar esse reinicio. Essas cartas não podem ser lidas por você, e nem há porque eu as reler, afinal, que existe aqui que não existe em minha mente? E por que diabos devemos guardar coisas que nos remetem a lembranças que não se fazem lembrar por si só?
Essas cartas são, no fim, uma experiência e uma forma qu’eu encontrei de organiza-la. Uma cicatriz que não carregarei comigo. Que será sepultada aqui. E, se desenterra-la, faça o favor de volta-la ao seu mausoléu, não depois de lê-la, mas sim quando carregar a cicatriz não for mais necessário.

PS: E, por favor, uma vez que não prometeu nada, mostre-as a minha amada.

Em um último adeus, alguém que esteve aqui.”

Esse mês, nós do céu literário decidimos abordar diferentes países como tema. Vejam aqui o país mágico de Daniel e a Veneza de Mara.

Comentários
1 Comentários

Um comentário:

Huirian disse...

Grande! O texto é tão inebriante quanto as abulas da mistica índia.