Cartas para alguém
“Índia, 18 de abril de
2014.
Saudações, Lisa!
Olá,
minha amada! Como está? Já chegou à Austrália? Já viu algum Canguru?
Pergunto-me se já sentiu minha falta. Sim, me pergunto. Assim como todas as
perguntas iniciais são – ainda que para você – para mim, essa também é. Você
sabe que sempre fui curioso. Minha curiosidade me leva a questionar, mesmo que
minha única certeza seja a de que não receberei respostas. Isso me fez – e me
faz – desperdiçar minha vida estudando religiões. Nunca saberei quais costumes
seguir, ou qual Deus me salvará da morte e da vida, mas ainda assim pesquiso
sobre cada um.
Como
você bem sabe, isso que me trás aqui. Desbravar a antiga índia, e sua riquíssima cultura. Cultuar seus animais e me purificar com seus rituais. O que
me faz nunca ter certeza é algo intangível, algo que não posso mudar, tal o que
faz das minhas perguntas a ti perguntas a mim. Não posso mudar a palavra dada,
Lisa. Prometemos que não enviaríamos cartas, e ainda que eu anseie para te ver
quebrando a promessa, não a quebrarei eu. Tivemos nossos motivos, é verdade.
Não poderíamos atravancar os sonhos um do outro, não é mesmo? Iríamos ambos
para Terras de amores impossíveis, ainda que só para nós.
Eu
sempre fui um homem de palavra. Você sabe disso e conhece o que vou contar, mas
uma vez que a carta não chegará até você, não preciso me preocupar em ser
repetitivo. Lembra do nosso quase casamento? Trai toda minha falta de fé por
você. Trai também minha paixão por trajes aconchegantes, mas não pude trair meu
compromisso com a verdade. Não fui capaz de responder sim ao padre. Eu não
sabia se estaria contigo em todos os momentos, e graças a isso tomei a verdade
como esposa e você como amante. E graças a isso, somos dois realizadores de
sonhos, Lisa. Ou ao menos eu sou. Queria saber se você também o é...
Com Carinho, o covarde do teu marido.”
“Índia, 18 de junho de 2014
Amada Lisa,
Dois
longos meses separam esta carta da outra. Longos e maravilhosos meses, embora
este não seja um dos melhores dias. Não vale citar o que me causa tristeza. Talvez
você pudesse argumentar que vale, mas no caso de não receber a carta, creio ser
inviável e, nesse caso, voltemos um pouco aos dois meses passados. Já citei que
foram maravilhosos, não é? Tanto faz, na
verdade. Aprendi que não é redundância quando é de propósito: ganha status de
figura de linguagem.
Bem
sabe que estudei inúmeras religiões, sempre as escolhendo por um motivo, com a
hindu não foi diferente. As divindades
estão entre nós, amor! Em todas as outras culturas anteriormente estudadas os
deuses estão em seus Céus ,
Montes Olimpos ou salões de Asgard, aqui não, minha querida, eles estão na rua.
Ao contrario dos outros, que usam parábolas, malabarismos teóricos e metáforas,
alguns dos deuses deste magnífico país simplesmente cagam e andam para nós, nas
ruas, da forma mais literal possível.
Confesso
que estou entrando nessa aventura de corpo e alma, minha querida. Agora
cultuo a vaca, e não a carne em minha grelha. Quem poderia imaginar que eu não
estaria com ela na saúde e na doença, não é mesmo? Embora a parte da vestimenta seja simples,
hoje este doti está me incomodando. Tenho um casamento mais tarde, mas minha
vontade seria ir de bermuda e regata. Sei que você me apoiaria, mas como pode
se nem mais me lê?
Atenciosamente, seu amante.”
Índia, 15 de Julho de 2014
Lisa,
Inicialmente
a ideia era escrever trimestralmente. Seria o suficiente até mesmo para um
livro, quanto mais para desanuviar minha mente. Provavelmente o livro nunca
seria publicado, nem mesmo por uma editora de bairro. Não que você – ou eu –
tenha algo contra, mas vou parar de divagar. Bom, não aguentei os três meses,
mas achei que dois era uma quantia razoável.
28
dias depois, estou eu aqui. Tentei completar ao menos um mês, mas é impossível,
de forma que escrevo essa carta torcendo para que escrever cartas não se torne,
com o tempo, meu único oficio nesta terra abençoada, que tem tanto a oferecer,
ainda que não possa te oferecer. Não pode me oferecer nem você e nem carne, é
verdade, mas em que outro lugar eu poderia ver mulheres belíssimas de sari?
Acho
eu cada vez mais tomo consciência de que estas cartas jamais chegarão à você e
me permito falar coisas das quais não falaria. Confesso, além disso, que
prefiro o clima daqui. Ainda que sempre tenha te dito o contrario, odeio o frio
com todas minhas forças, e o calor indiano é apaixonante. Isso e as pessoas a
cada esquina, cada uma com sua própria vertente religiosa. Tantos encantos a
descobrir. Tantas Índias a conhecer. Fico por aqui, na esperança de me demorar ao
menos quinze dias antes da próxima carta.
Aguardando sua quebra da promessa, Vitor.”
"Lisa,
Dois dias, foi tudo que aguentei antes de escrever esse bilhete.
Beijos, Vitor.
17/07/2014"
"Índia, 25 de Julho de 2014
Pela última vez, Lisa,
Esta
é a ultima vez que escrevo uma carta endereçada a ti e não te envio. Considerando
que já prometi que não te enviarei cartas, é a última vez que te – me? –
escrevo. Cansei das mesmas perguntas, minha cara. Qual a necessidade delas, eu te
pergunto?
Qual
a necessidade de estar na Índia se tudo o que faço é escrever cartas e bilhetes
a ti? E já começo essa carta me traindo: mesmo que eu cumpra a risca minhas
palavras, as cartas continuaram a surgir mentalmente, enquanto tento em vão pesquisar
a cultura deste local.
As
favas com o Taj Mahal. Não quero saber de sua história, do romance por trás
dele, do sonho abortado, não quero saber nem mesmo se qualquer uma dessas
coisas é verídica ou, ao menos, faz algum sentido. Minha vida deixou de ser verídica
e fazer sentido quando comecei a escrever as cartas. Ou isso.
Pela última vez, Vitor."
“Índia, 01 de Agosto de
2014
A qualquer um que não a
Lisa,
Nesta
carta te trago apenas dúvidas. A primeira: a quem desejei enganar com todas
estas cartas? Certamente não a você. Porque eu tentaria te enganar com cartas
que eu não te envio? E porque te pergunto coisas se eu mesmo terei de
responder? Porque ainda te escrevo a mim?
[...]
Por
que tenho necessidade. Já havia descoberto quando comecei a escrever essa
carta, e provavelmente as outras, mas agora, seis horas depois, admito isso para
mim.
Não posso trair minha
promessa, de não lhe enviar essas cartas, mas posso trair meus sonhos, mas
precisamente meu sonho da Índia, de dominar sua religião. Posso enfim descobrir
que meu sonho nunca foi descobri-la, mas sim te descobrir. Posso enfim prometer
ama-la e respeita-la, na saúde ou na doença, na Índia ou na Austrália.
[...]
Por
algum motivo, ainda me importo em terminar esse reinicio. Essas cartas não
podem ser lidas por você, e nem há porque eu as reler, afinal, que existe aqui
que não existe em minha mente? E por que diabos devemos guardar coisas que nos
remetem a lembranças que não se fazem lembrar por si só?
Essas
cartas são, no fim, uma experiência e uma forma qu’eu encontrei de organiza-la.
Uma cicatriz que não carregarei comigo. Que será sepultada aqui. E, se
desenterra-la, faça o favor de volta-la ao seu mausoléu, não depois de lê-la,
mas sim quando carregar a cicatriz não for mais necessário.
PS: E, por favor, uma vez
que não prometeu nada, mostre-as a minha amada.
Em um último adeus, alguém que esteve aqui.”
Esse mês, nós do céu literário decidimos abordar diferentes países como tema. Vejam aqui o país mágico de Daniel e a Veneza de Mara.