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sábado, 8 de março de 2014

Incansável nostalgia

Ali estava, mais uma criança solitária. São tantas. Gostaria de poder ajudar a todas, mas sei que não posso. Isso mudaria o ciclo natural da vida. Mas uma a mais não faria mal, eu acho… Apenas preciso cuidar para que não me descubram.

Concentrei-me em minha aparência. Aposto que ela gosta de princesas. Esse vestido azul com babados é bonito o suficiente, acho. A janela se abriu ao menor movimento de minhas mãos, e a ondulação que o ar de minha passagem provocou nas cortinas fez a menina virar-se.

Ela me olhou com espanto, mas sabia que não gritaria. Afastou as cobertas e sentou-se na cama.

— Você é um anjo?

A pergunta inocente pegou-me de surpresa. Ri alto, e ela olhou para a porta como se temesse que alguém entrasse a qualquer momento, pedindo silêncio ou mandando-a dormir.

— Fique tranquila. Ninguém pode me ouvir. Apenas você. — Assegurei-lhe, antes de responder a pergunta: — Não. Eu não sou um anjo. Eu sou a Nostalgia.
— Mas você parece tão jovem…
— Ora, querida, e com o que isso tem relação?
— Pra mim nostalgia é saudades. E saudade é o que sentimos do que já passou, do que é antigo. — Ela explicou. Aquilo em sua voz era vergonha?
— Nostalgia é mais do que isso. A Saudade deixa um quê de tristeza por onde passa. Mas eu não, eu não gosto de ver as pessoas tristes. Gosto de fazê-las lembrar de bons momentos também. E como poderia fazer isso tendo uma aparência apenas triste?!

Ela não havia entendido, tenho certeza.

— Veja bem: se você já estivesse bem velhinha, e se lembrasse de alguém que conheceu quando era pequena, como gostaria de pensar nessa pessoa? Como alguém da sua idade, tendo consciência que o tempo passou, ou como uma criança, com a sensação de que o Tempo não tem poder sobre você?
— Oh, entendi! — Um brilho passou por seus olhos, e ela comentou com voz sonhadora: — Deve ser maravilhoso, jamais envelhecer mesmo depois de tanto tempo!

Podia ver a admiração em seu rosto de boneca. Ah, se ela soubesse… Choraria? Sentiria pena? Talvez apenas me olhasse com pesar. Todas as pessoas para quem já apareci fizeram isso. Nem uma palavra. Nem um comentário. Nem mesmo um suspiro. Mas seus olhares diziam tudo. “Coitada! Isso não é viver! Está apenas vendo a vida passar…”.

— Ei! Você ainda pode me ouvir? — Ela perguntou, abanando a mão em frente ao meu rosto. Saí do transe, mas não tive coragem para mentir.
— Sinto muito… O que disse?
— Por que está vestida assim? — Oh não! Não outra vez! Olhei para minhas próprias roupas, confirmando o que já suspeitava: mudei outra vez. Agora já não mais parecia com a princesa que planejei ser para que a pequena não se assustasse tanto. Eu me parecia mais com uma dama dos anos 40.

Eu detestava isso. Detestava não ter controle sobre mim mesma. Mas era tão inevitável… Quando percebia, era tarde demais. Eu já havia mudado, minha antiga aparência tinha mudado tão rápido quanto o tempo ao meu redor. Rápido demais para os outros, devagar demais para mim.

— Porque não tenho controle sobre mim. — Respondi, sem rodeios. Não adiantaria de nada tentar amenizar a situação.
— Como assim?
— Posso aparentar ser jovem, mas já vivi mais do que você poderia acreditar. Quase tão antiga quanto o Tempo, é o que dizem de mim. Depois de tanto tempo, desaprendi a controlar como sou. São lembranças demais, épocas demais para que eu possa me apegar a uma só…

E veja só! Lá está ele! O olhar de pena da qual lhe falei há pouco. Permanecemos um pouco em silêncio. Quis quebrá-lo, mas não tinha coragem. Quem diria, pela primeira vez eu não me sentia envergonhada por revelar quem realmente sou! Na verdade, era um silêncio bom. Quase sereno.

— E como você é? Como você é de verdade?

A pergunta me pegou de surpresa. Acho que nem mesmo parei para pensar sobre isso algum dia.

— Eu não sei. — Respondi com sinceridade.
— Como não?
— Vai ver as pessoas nunca estão satisfeitas com o que estão passando. Vai ver elas sempre querem algo diferente, ao ponto de sonharem com isso. Algumas pensam tanto em uma história melhor que acreditam que a tendência é piorar. Sempre foi assim. Elas sempre acham que o passado é melhor do que o que estão vivendo. Eu sempre existi, mas nunca com uma forma concreta.
— É confuso… — Ri suavemente. Ela nem precisava dizer. As crianças têm os olhos mais expressivos, isso eu sempre soube, e era claro que ela não havia entendido tudo o que eu disse. Ia explicar melhor, quando ela voltou a falar.
— O que está acontecendo?! — O alarme em sua voz me assustou. Olhei para baixo, apenas para perceber que estava sumindo, literalmente. Meu corpo agora estava translúcido o suficiente para que eu conseguisse enxergar o lençol de borboletas da cama.
— Ah, minha querida, eu preciso ir… — Disse, com pesar. Ela pareceu triste por um momento, mas a esperança falou mais alto quando me questionou.
— Você vai voltar? Por favor, volte! Gostei de conversar com você!

O que quer que ela tenha dito depois disso, eu não ouvi. Sua voz se distanciou, e tudo se dissolveu ao meu redor. Por que era sempre assim? Estava tão perto de fazê-la entender porque eu a visitei… Não queria lhe explicar porquê eu existo, só queria que ela soubesse como viver para que nunca mais me sentisse próxima!

De qualquer forma, jamais entenderei as razões do Tempo. Ele mandou-me para longe, e longe ficarei. Não sei quanto tempo mais se passará antes que minha forma mude mais uma vez, ou quem eu visitarei na calada da noite, quando essa pessoa precisar de ajuda. Só espero que essa pessoa entenda; eu não tenho poder sobre o Tempo, e nem ele tem poder sobre você. Não me culpe por um passado bom que teve fim, só viva para que eu nunca precise lhe visitar. Espero que a criança cujo nome não cheguei a descobrir tenha entendido isso, e espero que você entenda também.

Eu sou a Nostalgia, e te juro: não sei quem sou. Nem porque sou. A única coisa que sei é que não sou feita de futuro. Pertenço ao passado, e só. Talvez, se eu me esforçar, não me confundirão com a Saudade, e nem me acharão ruim. Só talvez. Enquanto isso, levarei lembranças boas a quem precisar delas.
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