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sábado, 20 de outubro de 2012

Espectro



Se soubesse voar, voaria. Proibiria seus pés de menina roçar na grama verde-fosca que circundava sua casa. A grama nunca era brilhante. Nunca. Assim como a menina nunca seria mulher – por mais que crescesse, mais que quisesse ir além do que era em suas pernas tortas e machucados maculando a pele era sempre menina. Menina Virgínia. Virgem Menina: ela era. De falta de asas para voar, nela sobravam pés. Então corria. Arfante pela grama sem brilho como se precisasse somente dum impulso para que de suas costas nascessem asas como nascem flores do chão. Se soubesse mais um pouco do que sabia naquele momento Virginia voaria. Se soubesse, mas nunca saberia. O nunca sempre caberia em sua essência de menina.

Virgínia era celeste.

Diante do mundo calava-se, afinal palavras sempre foram desnecessárias. Se tinha sentimentos por que precisava curvar seus lábios em palavras que não a cabiam? Não gostava da fala, porque sabia que no vão dos seus lábios as idéias perder-se-iam da forma como foram concebidas. Trancafiava-se em seus pensamentos e lá ficava, habitando sua própria superficialidade, conectando tudo que não tinha conexão. Ligando-se. Desligando o mundo que habitava em seu espectro de respiração contra o espelho da penteadeira do quarto a meia-luz. No escuro ela não sabia quem era. Na luminosidade sentia-se fora de si.

Nos meios termos ela encontrava-se sem nem ao menos saber que estava perdida.

Voaria, se soubesse. Se soubesse! Virgem Virgínia de pés descalços proibia-se de ser quem era. Queria ser outra. Queria ser mulher-perfeita para um homem-qualquer, filha educada para um pai que nem existia, irmã mais velha para a meia-irmã que nascera morte. Vivia entre possibilidades e falta de escolhas a Virgínia para sempre menina. Nunca seria mais do que era, e disso sabia. Sabia tanto que quase chorava com a certeza entalada em seu espírito que só queria ir além do que era.

Os pés descalços calçaram-se com saltos de menina-moça. Os vestidos rodados e sujos pela poeira das estrelas que ainda não alcançara foram trocados pela provocação de decotes e saias curtas. De borboleta para libélula. De menina para mulher. De alguém que não sabe o que é para alguém que não sabe o que quer. Virgínia não queria-se. Virginia só queria amor! (mas amor ela nunca teria).

E mesmo sem saber voar, voou. Mesmo sem asas alcançou o além do céu que almejava. Encontrou nas nuvens a dor que a maculou. Fez de sua pureza putrefação, porque seu sonho tornou-se pecado e seu pecado fez-se desatenção. E desatenta Virgínia matava-se aos poucos, e erram esses pequenos suicídios a elevavam. Para o céu de tempestades e coisas que não deveriam caber no espírito de uma menina! Para o céu de malcriações e beliscões em sua pele já crescida – mas você cresceu, por que Virgínia? Para os beijos de rapazes que não sentiam amor. Para abraços de meninos mal crescidos. Para carícias que doíam em sua pele crua. Sua pele era crua de si mesma, mas era bela. E voou pela beleza que adquiriu, voou porque voar era o seu objetivo. Alcançou os anjos, mas de lá caiu. Caída Virgínia. Desamada Virgína. Enganada Virgínia. De olhos de maresia e salpicados da falta de saber Virgínia renegou-se. Proibiu-se de se proibir.

Nos meios termos ela não encontrava-se mais, mesmo sabendo que estivesse perdida.

Virgínia estava morta: nascia assim Valquíria.
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