Se soubesse
voar, voaria. Proibiria seus pés de menina roçar na grama verde-fosca que
circundava sua casa. A grama nunca era brilhante. Nunca. Assim como a menina
nunca seria mulher – por mais que crescesse, mais que quisesse ir além do que
era em suas pernas tortas e machucados maculando a pele era sempre menina.
Menina Virgínia. Virgem Menina: ela era. De falta de asas para voar, nela
sobravam pés. Então corria. Arfante pela grama sem brilho como se precisasse
somente dum impulso para que de suas costas nascessem asas como nascem flores
do chão. Se soubesse mais um pouco do que sabia naquele momento Virginia
voaria. Se soubesse, mas nunca saberia. O nunca sempre caberia em sua essência
de menina.
Virgínia era
celeste.
Diante do mundo
calava-se, afinal palavras sempre foram desnecessárias. Se tinha sentimentos
por que precisava curvar seus lábios em palavras que não a cabiam? Não gostava
da fala, porque sabia que no vão dos seus lábios as idéias perder-se-iam da
forma como foram concebidas. Trancafiava-se em seus pensamentos e lá ficava,
habitando sua própria superficialidade, conectando tudo que não tinha conexão.
Ligando-se. Desligando o mundo que habitava em seu espectro de respiração
contra o espelho da penteadeira do quarto a meia-luz. No escuro ela não sabia
quem era. Na luminosidade sentia-se fora de si.
Nos meios termos
ela encontrava-se sem nem ao menos saber que estava perdida.
Voaria, se
soubesse. Se soubesse! Virgem Virgínia de pés descalços proibia-se de ser quem
era. Queria ser outra. Queria ser mulher-perfeita para um homem-qualquer, filha
educada para um pai que nem existia, irmã mais velha para a meia-irmã que
nascera morte. Vivia entre possibilidades e falta de escolhas a Virgínia para
sempre menina. Nunca seria mais do que era, e disso sabia. Sabia tanto que
quase chorava com a certeza entalada em seu espírito que só queria ir além do
que era.
Os pés descalços
calçaram-se com saltos de menina-moça. Os vestidos rodados e sujos pela poeira
das estrelas que ainda não alcançara foram trocados pela provocação de decotes
e saias curtas. De borboleta para libélula. De menina para mulher. De alguém
que não sabe o que é para alguém que não sabe o que quer. Virgínia não
queria-se. Virginia só queria amor! (mas amor ela nunca teria).
E mesmo sem
saber voar, voou. Mesmo sem asas alcançou o além do céu que almejava. Encontrou
nas nuvens a dor que a maculou. Fez de sua pureza putrefação, porque seu sonho
tornou-se pecado e seu pecado fez-se desatenção. E desatenta Virgínia matava-se
aos poucos, e erram esses pequenos suicídios a elevavam. Para o céu de
tempestades e coisas que não deveriam caber no espírito de uma menina! Para o
céu de malcriações e beliscões em sua pele já crescida – mas você cresceu, por
que Virgínia? Para os beijos de rapazes que não sentiam amor. Para abraços de
meninos mal crescidos. Para carícias que doíam em sua pele crua. Sua pele era
crua de si mesma, mas era bela. E voou pela beleza que adquiriu, voou porque
voar era o seu objetivo. Alcançou os anjos, mas de lá caiu. Caída Virgínia.
Desamada Virgína. Enganada Virgínia. De olhos de maresia e salpicados da falta
de saber Virgínia renegou-se. Proibiu-se de se proibir.
Nos meios termos
ela não encontrava-se mais, mesmo sabendo que estivesse perdida.
Virgínia estava
morta: nascia assim Valquíria.