Morte e esquecimento
- Quer ir comigo num Sarau? – Cuspiu Vitor em cima dela. Eu certamente
poderia usar “disse” ou “falou”, mas estes não fariam jus ao modo como as
palavras foram expelidas de sua boca. Como se tivessem engasgadas desde o
primeiro dia que se viram, a primeira aula, e três anos depois, na última aula,
sozinhos no estacionamento, ele cuspiu.
- Para quem esperou três anos para falar, você fala rápido
demais. - Ela sempre gostou de notas enigmáticas. E ele sempre adorou isso
nela. Mas precisava de uma resposta, e sua garganta ainda estava dolorida da
ultima cuspidela. – E isso é um sim, para essa sua cara de interrogação.
- É dia um. As nove. Eu não tenho seu endereço...
- E não precisa. Me dê o endereço e nos encontramos lá, às
nove.
Ele achou que ela não iria. E uma hora de atraso não ajudou
a mudar seu pensamento. Uma hora encarando a decoração do salão, cujo tema era
morte. Ninguém excepcional se apresentaria naquela noite. Apenas alguns bons
amigos. Por sobre os caixões, decorados com frases populares...
“Para uma mente
bem estruturada, a morte é apenas uma aventura seguinte”
“Uma pessoa só
morre quando é esquecida”
“Mãe se eu
morrer de um repentino mal, vende os meus bens, a bem dos meus credores...”
Ou não tão populares assim. Mas que se dane, ela chegou e
era a mais bonita da festa.
Procuraram uma mesa, pediram uns petiscos e fingiram se
importar com cada uma das frases ditas por sobre os caixões, mesmo que só quisessem ir embora. Ele nunca verbalizaria que só queria ir para a casa dela e tirar toda
aquela produção. Sim, era o primeiro encontro, mas depois de três longos anos. Para o bem dele, ela nunca teve problema com as palavras.
- Eu duvido você repetir a última frase que o gordo que eu
não lembro o nome disse.
Ele acordou do transe. Os pensamentos dele já estavam na
casa delae ela já estava deitada na cama. Por motivos óbvios, não conseguiria
repetir as palavras.
- Já que não vai usar a boca para falar, por que não a
utiliza para outra cosia, benzinho?
Ele bem que queria. E o faria ali mesmo. Ela percebeu e o
cortou, por uma última vez.
- Não aqui. E não a base de suco de Romã.
- Eu tenho vinho em casa...
- Então me leva para lá. – Ela levanta. Ele levanta junto e
se encaminham para a porta, enquanto ninguém percebe. Acho que poderiam transar
ali sem ninguém perceber. Geralmente escritores medíocres gostam do que outros
escritores medíocres escrevem. Ele sabe disso porque é um escritor medíocre.
Mas a hipótese com suco de romã já foi descartada.
O problema de ir num Sarau fúnebre é que os organizadores se
sentem na obrigação de fazer o evento bem tarde, em algum beco obscuro da
cidade. Quando você sai junto aos outros, tudo bem. Mas quando você sai sozinho
antes, bom, geralmente você vê um bandido. E geralmente, ele te vê.
- Dinheiro, jóias, celular... – Sempre o mesmo discurso. E
eles não reagem. Você passa tudo o que tem para ele e ele? Atira. Seis vezes,
até esvaziar o tambor. E ainda assim, eles não reagem.
E ela está morta no chão, sangrando. Enquanto ele está vivo.
Nem sequer foi atingido, mas jamais conseguirá esquecer-se dela. Enquanto ele
mesmo será em breve esquecido...