Sobre bolos e migalhas
Essa é mais um conto da garota infeliz apelidada de cinza
por este que vos escreve. Só cinza agora. Era oficialmente uma adulta, havia
completado 18 anos, e dera uma bela festa. Ela roubou um bolo do padeiro gordo
na esquina, e fez das migalhas de pão que costumava dar aos pombos – Só aos cinzas, nem pretos, nem marrons, nem brancos. Os cinzas - acompanhamentos.
Convidou todos os amigos que conhecerá ao longo de dois anos
na cidade grande. O Primeiro atendia pelo nome de Peter. O conheceu em um sebo,
enquanto procurava um livro para roubar, uma vez que nem só de pão se alimenta
a solidão, meus caros.
Abriu um exemplar de “O morro dos ventos uivantes”, e lá
estava ele, em formato de dedicatória. Nunca leu o livro, mas a dedicatória relia
todas as noites, feita uma oração, na esperança de um dia acreditar que era
para ela, e não para a moça apelidada “Deusa” por seu amigo, e apenas amigo,
Peter.
Iracema também estava presente. Conheceu a menina num
recorte de jornal. Morta aos quinze, em um beco, não comia a dias. A fotografia
era toda cinza. Era, aos olhos da menina, uma amiga madura e vivida. La não
falava muito da garota, mas ela parecia o tipo que alimentaria aos amigos antes
de si mesmo. Era o mais próximo de um deus, ou santo, que a Cinza tinha para
rezar.
Entre porta-retratos, fotos 3x4, e até mesmo roupas, para
outros amigos sem nome, ela devorava o bolo e as migalhas. Eu fui o último a
chegar e nem entrei na festa. Só observei aquela garota, festejar sua solidão
em meio a fuligem. Fui covarde, eu sei. Mas prometi não mais ser. Nunca mais.