Este conto é o trecho de uma história minha. Christer Baranov é um personagem e O Vendedor de Tempo é um conto escrito por ele. Não passo, portanto, de reles mensageira.
O
vendedor de tempo
Por Christer Baranov
Tudo começou quando Fortunio
Petrov percebeu o quanto as pessoas andavam apressadas, reclamando da falta de
tempo, reclamando que reclamar da falta de tempo tomava tempo e então parando de reclamar para
correr por todos os lados e no fim reclamar que não deu tempo.
Mas Fortunio tinha tempo de
sobra. Quando tinha 12 anos, colou nas paredes dos corredores da escola
anunciando seu novo produto: tempo. Assim dizia o cartaz:
“Há algo em seu dia que você
queria poder descartar? Algo que o faz perder seu tempo, quando poderia estar
fazendo outra coisa? Ligue para o telefone abaixo e nós, da Equipe de
Vendedores de Tempo, faremos em seu lugar!”
E embaixo, em letras miúdas,
havia um P.S.:
“Não fazemos faxina.”
Fortunio não possuía uma equipe de
vendedores de tempo, é claro, e tinha que dar conta sozinho de todos os
pedidos. Começou com os trabalhos de escola, copiando dos livros para os
cadernos os textos que alguém havia sido encarregado de criar. Partiu, então,
para entregas e recados e depois para alguns trabalhos mais complexos, como
relatórios de reuniões importantes.
Os anos foram se passando e
Fortunio já contava 17 quando passou a preencher ocasiões mais pessoais.
Satisfazia namoradas, projetava desculpas elaboradas, escolhia presentes (com
cartão especial era mais caro), comparecia a festas.
Ele não se preocupou em ir para a
faculdade. Com o dinheiro que arrecadara e continuava arrecadando podia
sustentar-se pelo resto da vida – ou, pelo menos, pelo resto da saúde.
O que Fortunio não percebia era
que o tempo que vendia não mais era dele. Outras pessoas o compraram e não há
devoluções nesse caso. Fortunio gastava seu tempo, dava seu tempo, vendia seu
tempo e ficava sem nenhum.
Certo dia, quando já passava dos
30, recebeu uma proposta milionária. Um velhaco lhe disse:
– Dou todo o dinheiro que pedir,
se me der em troca todos os seus anos.
– Se é por todos os meus anos,
então quero todo o seu dinheiro.
O velhaco aceitou e marcou então
com Fortunio em sua casa para que a transação fosse feita. Ele chegou cedo na
mansão que logo seria sua e encontrou o negociante já de pé. Sobre a
escrivaninha de seu escritório havia uma grande quantidade de folhas brancas
contrastando com o negro do ébano.
– Este é o nosso contrato –
disse. – Sugiro que o leia com atenção.
Mas Fortunio não deu atenção às
palavras cansativas e a quantidade de parágrafos pulados era maior que a
quantidade de parágrafos lidos. Queria logo ter todo o dinheiro que lhe havia
sido prometido e, seja o que for que o velho quisesse dele nos anos seguintes,
ele teria dinheiro suficiente para comprar a justiça e simplesmente não pagar.
Na verdade, mesmo se resolvesse ser honesto com o homem, não seria por muito
tempo pois ele logo morreria e Fortunio estaria livre.
Assinou sem pensar duas vezes e o
negociante fez o mesmo. Até ver a assinatura ele sequer sabia que seu nome era
Onofre.
– Já fez suas malas? – perguntou
Fortunio em sua excitação incontida.
– Não será necessário.
– Como não? A casa não é minha
agora?
O velho Onofre sorriu.
– Logo a terei de volta.
Aquele momento foi a primeira vez
em que Fortunio desconfiou de toda a situação. Que queria aquele homem que ele
fizesse pelo resto da vida? Que diziam as linhas não lidas do contrato? Havia
ele sido enganado? Ele, sempre tão honesto e disposto a ajudar os outros! Ele,
Fortunio, que dispunha de uma grande carreira em seu ramo. Ele que era um
inovador, um empreendedor!
Que haveria nos planos daquele
velho?
– Dê-me o contrato – pediu. –
Quero relê-lo.
Mas o sorriso do outro o dizia
mais do que ele queria saber.
– Não acho que terá tempo para lê-lo.
Fortunio sentou-se em uma das
cadeiras de espaldar reto que ficava em frente a escrivaninha.
– Como assim não terei tempo?
– Ora, você não acabou de
vendê-lo a mim? O tenho agora.
Seus olhos o enganavam, Fortunio
sabia, mas os cabelos brancos e ralos do velho pareciam escurecer
vagarosamente.
– O que está acontecendo? –
perguntou.
A resposta viria, caso os dentes
do homem não tivessem caído todos de vez. Não, não estavam caindo, estavam
nascendo e expulsando, numa cena nojenta e bizarra, a dentadura de sua boca
enrugada.
Mas não tão enrugada assim.
Fortunio a achara muito enrugada quando o vira antes, mas agora ela parecia
mais lisa e tinha também mais cor. A dentadura agora pendia na mão e o sorriso
naquele rosto era formado por dentes de verdades – e que ficavam cada vez mais
brancos. As olheiras começaram a diminuir e a calvície sumia no cabelo que
agora inegavelmente estava ficando castanho escuro.
Fortunio sentiu-se cansado.
Escorou o cotovelo na mesa à sua frente e a testa na mão.
Notou, então, que sua pele estava
diferente, mais flácida. Desviou a atenção do espetáculo que o homem a sua
frente representava. Olhou para as próprias mãos: estavam enrugadas, e
enchiam-se de pontinhos marrons. O mesmo acontecia por todo o seu braço.
Teve que tirar o paletó para
observar melhor. Sua pele estava ficando mais mole a cada segundo e sua barriga
também parecia maior e molenga.
Levantou-se de um salto e sentiu
uma forte dor nas costas. Teve de se escorar na escrivaninha para não cair, segurando
com a outra mão as costas. Fez uma careta de dor, tentando raciocinar.
Olhou dentro da calça e viu seu
pinto murcho e mole. Estava fraco e os joelhos – ele sentiu ao tocá-los com a
mão – estavam ossudos.
– O que fez comigo? – perguntou
ao velho que agora não estava mais velho. Ao falar, não reconheceu a própria
voz. Parecia ter se tornado mais fraca e cansada de tanto que já falara na
vida.
– Não fiz nada que você já não
vinha fazendo há muito tempo – disse Onofre, que agora tinha os cabelos sedosos
e escuros. Estava bonito e as linhas de seu rosto haviam se atenuado de tal
maneira que não eram mais vistas.
– Você está roubando minha vida!
– exclamou Fortunio, sentando-se de novo pelo cansaço que o abatia. Queria
gritar, mas sabia que não conseguia, que não tinha forças. Suas mãos começaram
a tremer e ele sentia como se tivesse vivido anos e anos num só momento.
Onofre sorria, olhando para as
próprias mãos. Parecia que nunca iria parar de rejuvenescer. Andou até um canto
do escritório onde havia um espelho perto de um cabide de casacos. Olhou-se
demoradamente. Sorriu, ficou sério, experimentou diferentes expressões. Não
parecia ter mais que trinta anos agora.
Voltou-se para Fortunio.
– Quantos anos você deve ter
envelhecido? Cinquenta? Sessenta?
– Ladrão – acusou Fortunio, quase
sem forças para falar. – Ladrão. Quando vai parar de rejuvenescer?
– Quando você morrer – respondeu
um Onofre jovem, forte e vívido. – O que deve ser a qualquer momento.
Ele aproximou seu rosto do de
Fortunio, analisando-o por alguns segundos.
– Devo ter vinte e poucos anos
agora – disse, com o rosto a centímetros do dele. Federico já não ouvia bem,
mas podia distinguir as palavras do jovem à sua frente e também encarar com
ódio suas feições. – E tudo o que eu te dei volta a ser meu quando você morrer.
Estava no contrato.
Ele voltou até o espelho e tirou
da parede. Tinha uma facilidade juvenil de carregar o objeto tão pesado.
Então ele apontou o espelho para
Fortunio.
Era uma imagem horrenda. Ele
desfigurado e debilitado, segurando o coração com uma das mãos e o joelho com a
outra. Fazia uma careta de dor que deixava suas feições enrugadas ainda mais
feias e suas olheiras o davam o ar cadavérico que anunciavam sua morte.
Seu peito doía, mas doía tudo o
mais também. Imaginem envelhecer sessenta anos em um minuto! Sim, sessenta
anos, porque uma vida longa aguardava por Fortunio, se ele a não tivesse
vendido.
A visão foi se perdendo e tudo
escurecia de forma que a última coisa que vira antes de morrer fora a si mesmo,
daquela forma horrenda e humilhante. E antes que cessasse todo seu sofrimento,
Fortunio pôde ouvir a voz jovem e sem piedade de Onofre:
– Morre agora o homem que nunca
viveu.
Sobre a Autora:
Érica Prado tem 17 anos, gosta de coisas fáceis tipo miojo, física, literatura e mudar o mundo. |