Querido Humbert,
Creio que passamos tanto tempo
sem nos corresponder que você sequer se lembra de como eu sou - ou costumava
ser. Há mais de um ano que não provo da melancolia constante que suas cartas
carregavam, e você também tem sido privado das minhas. Mas pelo menos nao tem,
como eu, sido privado de si mesmo.
Não sei o que nos levou a parar
de escrever um para o outro. O tempo? A falta dele? E quem parou primeiro, eu
ou você?
A questão é que tudo mudou nesse
(curto?) período de tempo. Quando me
comprometi novamente a escrever para você, não sabia o que seria quando pegasse
o papel para fazê-lo. Porque eu não sou mais a sua Juliete, Humbert, com um
cigarro entre os labios, o cabelo trançado e uma teimosia que sempre se deixava
convencer. Assim como não sou como era na infância, quando nos escondíamos com
uma lanterna depois da meia noite para ler O Pequeno Príncipe. Não sei bem
dizer o que mudou, mas posso notar a diferença - e você também. Não há mais o
ardor que havia nas cartas ha um ano (por falta de prática, talvez?). Mas nunca
deixará de haver passado. O passado é indestrutível, Humbert, e ele te
transformou em uma parte de mim que nunca conseguirá ser esquecida.
Bem, ainda fumo. E ainda conto as
escassas estrelas da cidade grande. Ainda atraso o aluguel e ainda perco o sono
facilmente - o que nos faz concluir que, sim, ainda há um pouco da antiga
Juliete em mim.
Adquiri uma mania esse ano,
Humbert, que não posso chamar de rotina porque, você sabe, não sou organizada o
suficiente para estabelecer uma. Mas algumas noites (não todas), antes de
dormir, pego um papel e uma caneta e crio um personagem. Apenas crio: dou-lhe
uma aparência, um nome, uma personalidade, um QI - e então deixo-o sem
história, para que ele tenha também o livre-arbítrio e possa fazer o que quiser
da vida que o dei. Acha que isso é certo? Abandoná-los por aí, sem um destino,
sem eira nem beira, carregando todos os fardos que, talvez, eles pudessem se
livrar se eu os ajudasse? Por que brinco de Deus, abandonando-os ao invés de
guiá-los?
Talvez eu de a eles um rumo,
Humbert, talvez sim. Ou talvez eu apenas os crie e deixe soltos, sem pertencer
a mim nem a ninguém, à disposição de qualquer escritor que os queira para
enfiar em suas histórias e dar a eles um fim que eu não daria (porque eu não
sei dar fim, sei apenas dar início: por isso talvez tantas histórias inacabadas
e ideias se atropelando em minha cabeça). Não sou escritora de finais, sou
escritora de começos.
Não falaremos de mim: a ideia é
criar um personagem e deixá-lo solto para que qualquer pessoa que o queira
possa pegá-lo e dar a ele uma história.
Espero que não se zangue, Humbert.
Chega de falar sobre nós.
De sua Juliete.
Sobre a Autora:
Érica Prado tem 17 anos, gosta de coisas fáceis tipo miojo, física, literatura e mudar o mundo. |