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segunda-feira, 22 de julho de 2013

Supernova



As violetas
Algumas guerras são feitas de fogo, outras tantas de palavras, de travesseiros. Mas a que Ele vivia não podia se desenrolar em armas, ou vencer por travesseiros. Sua guerra era profunda, incutida no seu ente, enterrada fundo na parte invisível do corpo. A sua guerra era feita de razão. Uma razão tão peculiar, que podia se virar até mesmo contra o próprio dono. Afinal, não estava Ele lutando o tempo inteiro consigo mesmo?
                Outro fato curioso sobre guerras, é que elas muitas vezes não possuem motivos definidos para sua existência: apenas questões políticas, morais, ou pura diversão (no caso dos travesseiros), tudo junto. Mas essa que Ele havia criado podia ter um nome, de tão claro que era seu motivo: cegueira. E embora a palavra possa remeter a significados subjetivos e mensagens subliminares, não passa de um sentido cruel e literal. Era cego e fraco, e muito provavelmente um ser estranho e feio. Não possuía nenhuma atrativo para conquistar um coração, pelo contrário, parecia sempre suscetível à repelir quem quer que se colocasse em seu caminho. Mas Ele pouco sabia disso, não conseguia entender a palavra “feio”, e “estranho” também não fazia muito sentido. Afinal, para o Garoto, a própria existência é bela.
                Mas o campo de batalha não era menos sangrento só porque não entendia aquelas palavras. Ele lutava internamente pois estava apaixonado. E não podia ver se Ela se encontrava do mesmo jeito. Não ver com os olhos reais, mas com sua própria mente. Sabia tanto sobre Ela, mas não podia estar certo sobre a reciprocidade daquele sentimento. Era desesperador, um convite ao sofrimento. Mas aquele dia na escola, Ele falou com a Menina, com a Cega.
                - Você sabe o que é amor, Camille?
                - Eu posso ser cega, Miguel, mas eu entendo do que sinto. Os anos que meus olhos permaneceram no escuro me fizeram enxergar dentro de mim, eu acho. – Ele reconhecia quando Ela ria.
                - Mas você já amou? Eu digo, para saber o que é isso...
                - Você mesmo pode me responder. Você já amou, Miguel? Já sentiu a ponta dos dedos formigando, ou a sensação de cair do mundo, de parar no tempo? Pois eu estou sentindo agora.
                Seu coração quase saltou pela boca, quase que a alma foi grande demais para a caixa, e mal pode se conter e ficar imóvel. O Garoto não acreditava que a Garota sentia o mesmo que Ele.
                - P-p-p-or que diz isso, Camille?
                - Porque amo a vida, amor viver...
                A luz negra de apagou.
                -... porque amo você, Miguel.

As violetas não murcham
Ver, que nunca fora um problema, tinha se tornado um menor ainda para Ele. O Amante não parecia precisar enxergar nada, seu mundo era Ela, toda sua pele, sorrisos e abraços. Só queria tocá-La conversa-La e sentir que Ela se sentava ao seu lado na grama. Os dois Apaixonados não podia ser mais felizes, não cabia mais prazer naquelas Formas, mais amor poderia explodi-Los. Dois Sonhadores dançando na escuridão, duas sombras voando pela noite, rasgando o dia e trazendo a lua para dentro, tornando os buracos negros do universo, portos completos, faróis que guiavam sonhos.

E assim se arrastou o primeiro mês juntos, de olhos fechados, de sorrisos abertos.

As violetas não murcham, mas queimam
Ele não podia ter escolhido melhor lugar para se encontrarem: onde tinham se entregado ao sentimento, o quarto dEle. O aniversário de um mês de namoro, as bodas negras, já haviam começado uma hora atrás, e toda a comida já estava sendo ingerida. Os dois se encontravam deitados um sobre o outro na cama, escutando o silêncio que zunia, amando cada um a respiração do outro, a presença do outro. Até que a Cega quebrou o silêncio letárgico:
                - Você me acha feia?
                - Ah, qual é, Camille, como eu poderia te achar feia?
                - Sim, porque você é cego.
                - Não, porque eu te conheço o suficiente por dentro, e a sua alma é a mais linda que existe. – enlaçou seu corpo com os braços e permaneceram quietos por um curto tempo. – Onde você quer chegar com isso?
                - Você nunca teve vontade de ver, Miguel?
                - Não. – Sua resposta foi ríspida, feita de uma expressão facial cerrada, de quem gosta de fugir de assuntos específicos.
                - Nunca? – Seu tom de voz, podia-se dizer, era até mesmo sonhador. Cegos também sonham.
                - Não. Eu não tenho vontade de ver, você bem sabe. Existe um mundo cruel fora do véu, e não é algo que eu aprecie sonhar em ver. E meu mundo é você, sabe disso.
                - Mas tudo é tão fantástico, que não se pode não ter curiosidade de desbravar o universo!
                - Bem, eu não tenho. E olhe, estou vivo, mesmo sem nunca ter visto nada. E você também.
                O silêncio desta vez foi doloroso, uma cicatriz que se abria devagar.
                - Ah, Camille, você tem mesmo vontade de enxergar? – Ele disse, um misto de reprovação e ironia.
                - Ah, não, claro que não... – sorriu amarela assim que contou aquela mentira. – Mas, Miguel, preciso te contar uma coisa.
                Ele só fez esperar até que ela dissesse:
                - Eu vou fazer uma cirurgia essa semana... Eu vou começar a ver.

As violetas não murcham, mas queimam e se tornam cinzas
Haviam se passado semanas desde que Ela havia feito a cirurgia, e Ele finalmente poderia vê-La, ou melhor, encontrá-La. Seria ela quem poderia vê-Lo.
                Os pais da Garota abriram a porta com sorrisos e o acompanhou até o quarto dEla. A Namorada estava lá deitada na cama, e embora ele não visse nada, sentia o cheiro de infelicidade. Era um cheiro forte, de pólvora, de mina que vai explodir sobre os seus pés ao próximo passo. Eram lágrimas. Os pais deixaram o cômodo, e permaneceram os Dois, afogados somente no ruído dos carros passando na rua por algo que pareceu levar anos até que acabasse.
                - Você está bem? – Aquela pergunta pareceu apropriada.
                - Não... quer dizer, sim.
                - Então... como é, você sabe, ver?
                - É desesperador, é luminoso e cheio. É confuso e tão... feio... Tão feio que finalmente entendi o que é.
                - Feio? Mas... eu pensei que...
                - Você é feio, Miguel... – Sua voz estava embargada, e Ela já falava mais alto, o choro tornando as palavras, cortinas despedaçadas. O tempo era sugado pela boca da Menina, enquanto ela se enraivecia. - ...tão feio. Eu! Eu sou pior ainda! Tenho esse rosto deformado! Essa barriga gorda! Esse mundo não é belo! O que se tem para ver nessa droga?!
                - Não, Camille, você é... - assim que se aproximou da cama para consolá-La, ela o empurrou.
                - Sai daqui! Sai daqui! Sai daqui...

                Deixou a casa trêmulo, e não havia parado de chorar até chegar em seu próprio quarto. Nem ali as coisas estavam estáveis: tudo desmoronava, quebrava-se, liquefazia-se. Era o inferno, definitivamente, o sofrimento eterno. Deitou na cama para dormir, atormentado ainda, quando teve seu primeiro pesadelo, o de que na verdade nunca fora cego na vida.


Comentários
2 Comentários

2 comentários:

Coletivo Poesia Marginal disse...

Muito bom, João!
É, particularmente, bom ver textos grandes aqui, e de tamanha qualidade!

Huirian disse...

MALUCO!!!
não encontrei elogio fofo dessa vez, esse texto merece cada veia que eu saltei pra dizer essa palavra!
mando muito bem cara.