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segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Alice

Este conto é inspirado e baseado na música Alice, do Kid Abelha.

Alice estava tão furiosa quando me acordou que quase se via a imagem do demônio refletida em seus traços já gastos pelos 30 anos de vida. Sua vida baseada em extremos emotivos a tornava marcada, com rugas que vastavam seu rosto e só tornava cada vez mais insuportável olhá-la diretamente. Sua forma física era só mais um motivo contra qualquer envolvimento: mau-hálito, grosserias e sarcasmos completavam a lista de defeitos infinitos. Em resumo, Alice era, é e provavelmente sempre será (mesmo que seja preciso escrever em letras garrafais em seu túmulo para que isso permaneça intacto para o resto do tempo) a pessoa mais desagradável do mundo. Mas, mesmo com todos aqueles empecilhos que repeliam pessoas todos os dias, mesmo com o jeito dela de me acordar durante a madrugada para ir para o trabalho, eu a amava incondicionalmente, tanto, que chega doer, que chega odiar.
Ela não disse nada após me balançar violentamente, se privou apenas á um movimento brusco de dar as costas e se sentou no lado oposto da cama, encima da mancha amarelada de suor que ela contribuía no aumento todas as noites. Sentada, com sua postura incorreta, Alice escrevia o que deveria ser o vigésimo bilhete de despedidas no último mês. Eu não conseguia enxergar do lugar onde eu me encontrava, mas provavelmente eu leria alguns minutos após a saída dela para o trabalho, as mesmas letras garranchosas compondo aquela frase que parecia ser seu slogan: “Vou viver o mundo que eu mereço. Adeus.”. Não resisti a um suspiro e cocei os olhos inchados, olhos de quem não dorme com a namorada que ronca a noite inteira.
- Alice, você não quer isso de verdade. Digo, não pode ser sério. – Eu sabia que ela me odiaria por aquilo. Alice não suporta ser subestimada. – São dez anos! Dez anos de tanto amor que não sei como coube em mim! Você precisa parar de esquecer-se do amor, do meu amor por você!
Sua reação foi tão previsível que caí para o lado novamente, deitando a cabeça no travesseiro: nenhuma resposta daquela boca fina e torta. Eu estava tão irritantemente cansado daquilo que faltava pouco para deixar escapar um “Até a vista, Alice.”, mas eu ainda não tinha perdido o juízo. Eu jamais arriscaria perder aquele estorvo, aquele problema mal-humorado que puxava todo o edredom e me deixava com frio durante a noite. Dizem que a liberdade é azul, mas todo céu já foi nublado. Ela era as nuvens gordas e negras do meu céu, mas mesmo que me deixasse escuro e morto, trazia chuva pros meus jardins, e me florescia alegria. Era um amor masoquista.
Minha namorada continuava a rabiscar, provavelmente com a intenção de me criar expectativa, formando no papel, algo que eu imaginava serem apenas traços indefinidos com o objetivo de deixar o post-it amarelo ainda mais horrendo. Afinal, era assim que tudo com ela ficava. Um dia ensolarado na praia podia se tornar uma visitinha ao inferno quando se estava do seu lado; uma festa na casa dos amigos (dos meu amigos, já que eram escassos os dela) se desenrolava num desastre sem tamanho. Alice possui uma única regra básica de vida: ser desagradável, não importa o que custar. Só o que eu nunca consegui entender, é a força que me faz, mesmo com todas as brigas e desavenças, não conseguir me separar, ou pior, ter medo quando ela – mesmo que por capricho – ameaça ir embora.
- Você é tão sincera que me assusta. – Divaguei, por um segundo, lutando contra o sono. Aquilo era mais para fazê-la se sentir bem, do que a própria verdade. – Nenhuma outra mulher seria capaz de acordar o namorado trinta e cinco em trinta dias no mês para avisar que ele não passa de um monte de merda. – Ela percebeu a dose de sarcasmo, e quase grunhiu, mixando com seu jeito cavalar de ser. – E olhe só, o monte de merda te adora mesmo assim. Eu arrisco afirmar que o mercado de homens não anda de tão alta qualidade
Dei uma pausa, enquanto o quarto permanecia mudo.
- Ah, qual é, rasga esse post-it e sei á, pede uma folga. Vem dormir mais um pouco comigo, vem. Eu estou cansado, mas quem sabe, se você pedir com carinho. – Minha risada não convenceu nem a mim, nem a ela, e foi o estopim para causar uma saída brusca da minha namorada do quarto. Ela largou o bilhete encima da escrivaninha (longe demais para que eu precisasse levantar para ler) e eu escutei a porta de vidro da frente se bater com força.
Não me levantei para ver o que ela afinal havia escrito, e só me cobri com o edredom. Lá ia-se ela mais um vez, levando tudo consigo: toda ironia, toda falta de carinho e desprezo. O seu poder de atração era tão grande, que o imã carregava até mesmo meus sorrisos, meu afeto. O grande espaço por ela ocupado completava os buracos recortados da minha alma.

E eu só rezava baixinho, esperando saber se eu a veria hoje, amanhã ou nunca mais.
Comentários
1 Comentários

Um comentário:

Huirian disse...

No final do texto, nao sei se quero bwojar ou matar alice. Magnifico.