Este conto é inspirado e baseado na música Alice, do Kid Abelha.
Alice estava tão furiosa quando me acordou que quase se via
a imagem do demônio refletida em seus traços já gastos pelos 30 anos de vida.
Sua vida baseada em extremos emotivos a tornava marcada, com rugas que vastavam
seu rosto e só tornava cada vez mais insuportável olhá-la diretamente. Sua
forma física era só mais um motivo contra qualquer envolvimento: mau-hálito,
grosserias e sarcasmos completavam a lista de defeitos infinitos. Em resumo,
Alice era, é e provavelmente sempre será (mesmo que seja preciso escrever em
letras garrafais em seu túmulo para que isso permaneça intacto para o resto do
tempo) a pessoa mais desagradável do mundo. Mas, mesmo com todos aqueles
empecilhos que repeliam pessoas todos os dias, mesmo com o jeito dela de me
acordar durante a madrugada para ir para o trabalho, eu a amava
incondicionalmente, tanto, que chega doer, que chega odiar.
Ela não disse nada após me
balançar violentamente, se privou apenas á um movimento brusco de dar as costas
e se sentou no lado oposto da cama, encima da mancha amarelada de suor que ela
contribuía no aumento todas as noites. Sentada, com sua postura incorreta,
Alice escrevia o que deveria ser o vigésimo bilhete de despedidas no último
mês. Eu não conseguia enxergar do lugar onde eu me encontrava, mas
provavelmente eu leria alguns minutos após a saída dela para o trabalho, as
mesmas letras garranchosas compondo aquela frase que parecia ser seu slogan:
“Vou viver o mundo que eu mereço. Adeus.”. Não resisti a um suspiro e cocei os
olhos inchados, olhos de quem não dorme com a namorada que ronca a noite
inteira.
- Alice, você não quer isso de
verdade. Digo, não pode ser sério. –
Eu sabia que ela me odiaria por aquilo. Alice não suporta ser subestimada. –
São dez anos! Dez anos de tanto amor que não sei como coube em mim! Você
precisa parar de esquecer-se do amor, do meu
amor por você!
Sua reação foi tão previsível que
caí para o lado novamente, deitando a cabeça no travesseiro: nenhuma resposta
daquela boca fina e torta. Eu estava tão irritantemente cansado daquilo que
faltava pouco para deixar escapar um “Até a vista, Alice.”, mas eu ainda não
tinha perdido o juízo. Eu jamais arriscaria perder aquele estorvo, aquele
problema mal-humorado que puxava todo o edredom e me deixava com frio durante a
noite. Dizem que a liberdade é azul, mas todo céu já foi nublado. Ela era as
nuvens gordas e negras do meu céu, mas mesmo que me deixasse escuro e morto,
trazia chuva pros meus jardins, e me florescia alegria. Era um amor masoquista.
Minha namorada continuava a
rabiscar, provavelmente com a intenção de me criar expectativa, formando no
papel, algo que eu imaginava serem apenas traços indefinidos com o objetivo de
deixar o post-it amarelo ainda mais horrendo. Afinal, era assim que tudo com
ela ficava. Um dia ensolarado na praia podia se tornar uma visitinha ao inferno
quando se estava do seu lado; uma festa na casa dos amigos (dos meu amigos, já
que eram escassos os dela) se desenrolava num desastre sem tamanho. Alice
possui uma única regra básica de vida: ser desagradável, não importa o que
custar. Só o que eu nunca consegui entender, é a força que me faz, mesmo com
todas as brigas e desavenças, não conseguir me separar, ou pior, ter medo
quando ela – mesmo que por capricho – ameaça ir embora.
- Você é tão sincera que me
assusta. – Divaguei, por um segundo, lutando contra o sono. Aquilo era mais
para fazê-la se sentir bem, do que a própria verdade. – Nenhuma outra mulher
seria capaz de acordar o namorado trinta e cinco em trinta dias no mês para
avisar que ele não passa de um monte de merda. – Ela percebeu a dose de
sarcasmo, e quase grunhiu, mixando com seu jeito cavalar de ser. – E olhe só, o
monte de merda te adora mesmo assim. Eu arrisco afirmar que o mercado de homens
não anda de tão alta qualidade
Dei uma pausa, enquanto o quarto
permanecia mudo.
- Ah, qual é, rasga esse post-it
e sei á, pede uma folga. Vem dormir mais um pouco comigo, vem. Eu estou cansado,
mas quem sabe, se você pedir com carinho. – Minha risada não convenceu nem a
mim, nem a ela, e foi o estopim para causar uma saída brusca da minha namorada
do quarto. Ela largou o bilhete encima da escrivaninha (longe demais para que
eu precisasse levantar para ler) e eu escutei a porta de vidro da frente se
bater com força.
Não me levantei para ver o que
ela afinal havia escrito, e só me cobri com o edredom. Lá ia-se ela mais um
vez, levando tudo consigo: toda ironia, toda falta de carinho e desprezo. O seu
poder de atração era tão grande, que o imã carregava até mesmo meus sorrisos, meu
afeto. O grande espaço por ela ocupado completava os buracos recortados da
minha alma.
E eu só rezava baixinho,
esperando saber se eu a veria hoje, amanhã ou nunca mais.