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sábado, 24 de agosto de 2013

Limbo dos Poetas - LISA E O VELHO DA RUA MILMMS - Parte II




Hoje, trago para o limbo algo diferente. A segunda parte de um conto do Daniel Henrique, que teve sua primeira parte publicada aqui e terá sua terceira parte publicada na próxima edição do limbo. Espero que apreciem, e já sabem, o limbo é como o céu: para todos. Basta enviarem seus textos para adecadenciadoanjo@hotmail.com e os publicaremos, com seu blog, se for o caso.

Primeira Parte | Ultima Parte


PARTE II

Um Novo Amigo:

O ser humano é engraçado.
Às vezes gosto de pensar que ele teme a morte não por temer o desconhecido, o obscuro, o imperscrutável, mas sim por temer a solidão.
O decompor de um corpo dentro de uma caixa de madeira, ou o vagar de uma alma no limbo. Sozinha. Sem mais ninguém. Esse é o verdadeiro temor do homem – excetuando aqueles que crêem veementemente que irão para um plano superior assim que partirem deste mundo, é claro. A esses eu gostaria de dizer que continuem a pensar assim. É preferível morrer se agarrando a alguma crença vã, do que despojado de toda e qualquer esperança.
Era a solidão que eu temia, embora convivesse com ela há algumas décadas. Mais que a solidão da pós-morte, eu temia morrer sozinho.
Tive a sorte de estar agarrado à mão de uma garotinha de oito anos, quando parti.

Eu não tinha muitas atividades a fazer durante meus dias, de modo que o leitor pode imaginar o quanto me senti solitário quando Lisa não apareceu em casa nas duas semanas seguintes.
Nos fins de tarde, ao me postar cotidianamente perante a janela manchada, não foi uma Lisa sozinha que vi caminhando pela calçada, ao pôr-do-sol. Mas sim uma nova garota. Acompanhada. Ainda corcunda, é verdade, mas agora um garoto trotava ao lado dela.
Acompanhei-os com o olhar até onde meu pescoço duro permitia, no primeiro fim de tarde, mas voltaria a vê-los juntos no dia seguinte, e no outro, e no depois do outro, também.
Só depois de muito escavar minha mente atrofiada, foi que reconheci aquele garotinho como sendo Mimir Meyer: um visinho de Lisa.
Provavelmente estudavam na mesma escola e haviam começado a voltar para casa juntos.
Só em meados da segunda semana percebi que não se tratava de algo tão fulgural assim: Meyer carregava a mochila de Lisa – embora fosse visivelmente pequeno demais para carregar a sua própria –, e dispensara seu único cachecol para que a garota pudesse dispor de um sobressalente.
O olhar que ele derramava sobre ela me disse muito daquilo, também.
Mole. Derretido. Como doce de leite morno.
Somente o olhar dela me assustou.
Duro. Grave. Embaçado. Uma pedra no fundo de um rio.
Lisa sentia medo.
E não era de Mimir.

† † †

Implorando:
– Ei, Lisa!
Era sexta-feira e Lisa passara defronte a janela do n°. 5 sem me dirigir o olhar, novamente.
– Espere!
Saí manquejando porta afora e só fui alcançá-la no alto da ladeira, quando abria o portãozinho de casa.
– Até mais, Mimir – disse ela, sem olhar para mim.
O garoto devolveu a mochila pesada a ela, antes de acenar um adeusinho e atravessar a rua em direção à sua própria casa. Em seguida, ficou olhando de forma desconfiada para mim, com um par de globos azuis e brilhantes.
Não lhe dei atenção.
Lisa subiu os degraus de entrada. Postou-se empertigada, como se a decisão de entrar ou não em casa fosse a mais perturbadora do mundo. Mãos na cintura. Queixo altivo. A mochila escolar esparramada no chão, confundindo-se perfeitamente com as lajotas cinzentas.
Eu disse algumas palavras. Não me lembro certamente quais. O legado da velhice continua a afetar minha memória, ainda hoje enquanto desfruto uma pós-vida sublime e monotonamente feliz.
Tudo o que sei é que implorei para que ela fosse me visitar no dia seguinte, como sempre fazia.
Ela murmurou algo como “Vou pensar. Marquei de jogar xadrez com o Mimir no sábado”, antes de finalmente abrir a porta e escorregar para dentro.
Fiquei parado junto ao portãozinho de ferro por mais alguns segundos, no frio cortante do início da noite, vendo o reflexo dos passos dela no saguão de entrada recortados contra uma fina luz alaranjada.
Depois disso fui para casa.

Pausa para nota: Tarde demais, aliás. Quando um velho sai de casa à noite sem um casaco, as conseqüências podem ser devastadoras...

† † †
Palavras Machucadas e Manquejantes:
No dia seguinte, preparei a bebida quente preferida de Lisa antes mesmo que ela batesse à minha porta. Geralmente ela chegava às nove da manhã, quando eu tinha acabado de me levantar e fazer minha higiene pessoal. Mas neste sábado em especial, me levantei mais cedo.
Tirei uma lata de biscoitos de chocolate com castanhas do armário da cozinha e os servi em um prato cor-de-rosa, enquanto tentava controlar uma crise de tosse desenfreada
Não sei se já pressentia que aquela seria a última visita oficial de Lisa à minha casa; mas o fato é que preparei aquilo com redobrado carinho.
Exatamente às nove e trinta da manhã, três batidas secas e frias ecoaram da porta.
Abri-a com a xícara fumegante numa das mãos.
Lisa entrou.

A primeira coisa que percebi na menina assim que esta cruzou a soleira da porta, foi o modo como andava encurvada. Não da forma habitual, como sempre fazia. Mas de um jeito diferente: algo que denotava temor ou timidez.
Parecia um passarinho assustado.
Passando a xícara às suas mãos, conduzi-a até a poltrona de xintz e pedi que se sentasse.
Não no meu colo, desta vez. Ela não permitiu isso. Repeliu-me, como se esse tipo de coisa não fosse mais permitida. Peguei uma cadeira bamba na cozinha e pedi que me contasse a história. Não a história que lera no velho manuscrito que ganhara de mim, mas a história que verdadeiramente desejava contar.
A sua história.
As pernas cruzadas sobre o estofado desbotado, a cabeça tombada de lado e os olhos castanhos fitando o vazio, Lisa começou a falar.

Antes que as palavras começassem a fazer sentido para mim, tudo o que percebi foi como a poltrona parecia gigantesca sob ela.

Lisa falou pausada e tropegamente, virando-se em direção à janela da rua em intervalos de minutos para espiar algo: o movimento dos transeuntes, pensei na ocasião, embora estivesse enganado – novamente.
Fiquei horrorizado quando descobri a verdadeira causa do amedrontamento de Lisa Llibre. As informações vinham em forma de palavras machucadas e manquejantes, em direção a mim, arrastando-se através do pedaço de assoalho que nos separava para vir pedir abrigo às portas dos meus ouvidos de velho.
Opto por não transcrever tudo detalhadamente aqui. Prefiro informar-lhe apenas as informações mais importantes. A sucessão de fatos. Em ordem clara e linear – o que não aconteceu quando Lisa relatou-os a mim...

† † †

A História de Lisa:
Ao que parecia, os Hemersonn passavam por uma crise financeira ímpar, naquele inverno (digo ímpar visto que os Hemersonn sempre tinham dificuldades para se sustentar nessa época do ano).
Mais do que nunca, a comida parara de freqüentar as panelas da cozinha, e Rudolf Hemersonn, o pai de criação de Lisa – um sujeito alto e gorducho, com sotaque alemão –, começara a perder seus clientes da área rica da cidade.

Pausa para nota: Rudolf era jardineiro.

Todas as tardes, quando chegava da escola, Lisa encontrava a casa imersa numa densa áurea de briga e discussão. Estavam mais freqüentes do que nunca agora, e quase sempre terminavam com a garota levando uma surra e ficando de castigo no porão, enquanto Sabina, a mãe, apanhava em silêncio no quarto, a portas fechadas.
Lisa contou-me como chorava baixinho, durante a noite inteira, escondida sob a tenda de lençóis emporcalhados. As lágrimas escorriam por seu rosto, encardidas, até gotejarem no chão de lajotas para ficar lá, secando vagarosamente. Lisa sempre passava a noite inteira no porão, nessas ocasiões, de modo que aproveitava o tempo para avançar na leitura do manuscrito que eu dera a ela: o manuscrito de um diário.
Quando Rudolf perdeu seu último cliente firme, contudo, os castigos começaram a ser aplicados mais severamente. O pai adotivo voltara para casa bêbado, naquela noite, balbuciando com sua língua fedorenta e dormente que o Seu Casimiro, um ricaço da Rua Hércules, dispensara seus serviços sem sequer pagar-lhe o salário. Nessa noite, em especial, ele nocauteara Sabina com um soco antes mesmo que esta pudesse dizer “Covarde”, e partira para cima de Lisa.

Os dentes arreganhados. As mãos em garra. A insanidade nos olhos.

A garota não sabia o que estava acontecendo...

Tinha apenas oito anos. Não conhecia aquelas coisas...

Só sabia que estava no porão, em meio à tenda de lençóis destruída, por que reconheceu a lamparina que pendia do teto.
A dor no baixo ventre. O fedor de álcool, suor e mal-hálito foram as últimas sensações que a menina experimentou antes de desmaiar, com Rudolf Hemersonn em cima dela.
Acordou no dia seguinte com as roupas rasgadas e sujas, no chão frio do subterrâneo. Percebeu os cabelos louro-sujos amarrotados por sobre o rosto. As pernas dormentes. A corcunda desnuda fremindo.
E finalmente o sangue.
Rubro. Seco. Frio. Saindo de dentro dela e formando os contornos de uma rosa violada, no chão.
A garota se sentiu traída: o porão que outrora fora um lugar de sossego e fuga se tornara uma prisão; uma masmorra fria e indiferente; uma câmara de tortura.
Lisa Llibre soltou um grito.
Um grito que jamais foi ouvido – excetuando a sombra alada e altaneira que a fitava com seus muitos olhos, de um canto no teto.

Eu estava sentado no extremo limite da cadeira, enojado com o que acabara de ouvir. Eu era um homem velho. Experiente. Sabia que aquele tipo de coisa acontecia. Que existiam pessoas como Rudolf Hemersonn. Só não esperava ouvir aquilo de uma pessoa tão próxima a mim. De uma amiga.
Lisa. Machucada para sempre.
Em junho de 1961, eu não sabia que as marcas provocadas por esse tipo de trauma eram... eternas.
Mas agora eu sei.

Lisa soluçava profusamente, o rosto contorcido, o olhar vidrado, encolhida de encontro ao encosto da poltrona como se garras invisíveis tentassem alcançar-lhe o pescoço.
Estiquei a mão para confortá-la e ela me repeliu, assustada. Ainda não estava pronta para receber o toque de um adulto.
Passou-se um minuto e meio ou mais até que eu conseguisse dizer alguma coisa. Até que eu pudesse murmurar um “Eu sinto muito...”, um “Oh, meu Deus!”.
Pude ver nos olhos de Lisa que ela sentia medo. Muito medo
– Coma um biscoito, Lisa, vai te ajudar um pouco – sabia que minhas palavras eram vazias.
Lisa não tocou na comida nem na bebida.
E nem tocaria por muitos dias, como percebi.

Pausa para nota: Algumas semanas antes daquele sábado, Lisa me contara as últimas lembranças que guardara de seu lar, de sua verdadeira família, da sensação de ser amada. Contara-me de como sentia saudades das histórias que o pai contava-lhe antes de dormir, na cama; dos beijos de boa-noite sussurrados pela mãe e do perfume de seu cabelo roçando-lhe de levinho no rosto; de como calçava os sapatos de salto dela que ficavam gigantescos nos seus pés, “Como duas canoas”, era o que a mãe dizia. E essas eram as únicas palavras que Lisa se lembrava de ela ter dito algum dia, além de “Eu te amo”.

Com a cabeça oculta por um manto desnecessário, Lisa olhou para os dois lados da rua mais de uma vez antes de finalmente sair para a imundície da calçada.
Vigiei seus passos rápidos e desconfiados até que alcançasse o alto da ladeira e entrasse no jardim. Um vulto de aspecto oriental.
Queria ajudá-la, embora seu temor tivesse me proibido de fazê-lo.
Senti-me estúpido e inútil.


† † †
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