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domingo, 9 de fevereiro de 2014

as cinzas



Sentado no chão sujo da rua em que um dia existiu luz, fumava o último cigarro que seus pulmões suportavam. Eram tantos por dia que quase via seu corpo se esfumaçando e indo embora com o vento. Mas não queria ir embora com o vento, tinha de ficar. Mesmo que seus piores demônios o fossem buscar, não se permitia sair daquele lugar que tanto significava para esse alguém já sujo e de humor mordaz. A vida o fizera assim, afinal. Ou melhor, a morte, a morte dela o fizera assim. Ela quando decidira partir de seus braços para viver em algum inferno que não a própria existência. E por mais que uma vez tenham conversado sobre isso, e concordado que não haveria em algum outro lugar sofrimento maior do que na própria vida, ela duvidava. Letícia fechou os olhos e se entregou ao sonho masoquista.
                Ele pedia em silêncio aos deuses da carnificina que o olhavam de algum lugar lá entre as nuvens cinzentas, mas os hipócritas filhos-da-puta fechavam os ouvidos, e a única resposta que podia escutar era a risada estrondosa que ecoava no céu. E eles riam tanto do seu sofrimento que caíam, rolavam e choravam. Foi assim que começou a chover na rua onde um dia o sol brilhou. Seu cigarro apagou-se com os pingos d’água que caíam como bombas no chão e praguejou em alto e bom som, mas o barulho dos trovões risonhos abafou a sua voz. Largou o corpo de lado e aproximou-se mais ainda da lata de lixo, tentando se proteger com uma tampa metálica que havia no chão.
                Protegido, voltou a pensar naquilo que o fizera clamar por ajuda divina, e uma torrente de lágrimas ácidas começaram a rolar pela extensão do seu rosto, deixando uma marca brilhosa por onde passava.
                Letícia fechou os olhos e se entregou ao sonho masoquista. Mas ela era assim, mesmo, não? Tatuagens sem anestesia, piercings sem curativos, amor sem cuidado, filme sem cor, macarrão sem molho. Ele não entendia nenhuma de suas ideologias dolorosas, mas sabia que a ele não fazia bem algum. Quando compartilhavam a seringa suja e a via rasgar a pele com a ponta metálica, ou quando ela o pedia que ele lhe puxasse o cabelo com força e não parar nem que chorasse. Para de ser assim, Letícia, para de nos suicidar e nos afogar e me sangrar, chorar, morrer... Mas o que acontecia é que ela sempre o domava, sempre o agarrava pelo pescoço para se entorpecerem das formas mais sádicas possíveis. Não, Letícia, não, não posso, isso ‘tá me matando. Não é por que você morreu que eu tenho de fazer o mesmo. Não, não é pra você chorar, não é...
                Mas quem chorava de verdade era ele. Letícia não sabia chorar, só enfeitar o rosto com diamante líquido. As coisas nela não aconteciam como com as outras pessoas: tudo era pouco demais, tudo era rápido demais, tudo era opaco demais. Sangue a fazia bem, gritos a fazia bem, velórios a excitavam e morte poderia ser muito bem servida com molho madeira. Ele não aguentava isso, não conseguia. No começo ela era tão perfeita em sua imoralidade que aquele mundo fantástico chegava a brilhar, mas com o tempo as coisas ficaram tão monocromáticas que teve medo do escuro. E para se livrar da penumbra que começava a se aproximar sorrateira, decidiu falar de sentimentos, e de dores e de perdas.
                Eu não entendo por que diz isso agora. Enjoou de mim, Lucas, enjoou daquele fruto que você se lambuzava tanto? Vai então, some daqui e parte para um mundo perfeito, seu imundo! Vai com eles vai, com esse imbecis cegos e ignorantes! Talvez eu tenha me enganado...
                Você está entendo errado, Letícia. Eu só quero te ajudar, você precisa de ajuda! Deixa de ser orgulhosa e olha para mim! Eu não quero te perder, eu não quero te perder para você mesma. Por favor, por favor...
                Me passa o cigarro...
                Ele agarrou o braço dela.
                Me escuta!
                Me solta! Seu nojento, hipócrita!
                Ela desvencilhou-se dos braços deles, braços já cansados de suportar, e dedos que não eram fortes o suficiente para prender tamanha grandeza. Aquele relacionamento machucava tanto que tinha anestesiado. Agora entrava num estado de letargia que o suspendia, estado que durava enquanto os cachos negros de pontas avermelhadas sumiam pela rua, davam um adeus incerto, sem saber se iam voltar. Só sentiu o estômago inchar-se e retrair-se, o mundo virar de cabeça para baixo e alma mofada abrindo-lhe caminho pela boca. Era vômito, mas serviu de travesseiro para seus temores quando desmaiou.
                Lucas acordou sem sinal de vida, embora em seu pesadelo mais recôndito estava tão vivo quanto qualquer outra pessoa. Letícia não estava ali, e isso descartava a teoria confortante de que tudo aquilo não passava de uma ilusão do crack. Na verdade não se lembrava muita coisa do que acontecera antes de ter desabado sobre si mesmo na calçada. O cheiro pútrido de vômito seco era a única coisa que o trazia de volta à sensação de êxtase ao ver seu demônio amado partir, e de certa forma se sentiu agradecido por isso. Sentou-se com dificuldade e parou para pensar no que fazer a seguir, mas tomou uma decisão sábia e simples: esperar. Se bem conhecia aquela fada de unhas afiadas, ela voltaria. Só estava mordida com as palavras dentuças por ele ditas, e estaria de volta na manhã seguinte, no máximo, pedindo um pouco de heroína. Ela voltaria.
                Mas não voltou. E não voltou nunca mais. O corpo foi encontrado algumas quadras de distância, num terreno isolado de tudo. Haviam marcas profundas na pele, que de princípio julgaram terem sido provocadas por alguma gangue dos arredores – ele sabia que havia sido ela em sua loucura sangrenta, porém –, embora estranhassem o fato de que um estrupo não tivesse acontecido ali. A morte tinha sido provocada não pelos ferimentos, embora eles próprios fossem graves o suficiente para ocasionar uma hemorragia séria. Tinha sido overdose. Era uma palavra tão doente que se encontrava em estado terminal. Letícia não gostava dela. Achava ser uma criação estúpida de uma sociedade estúpida. É que sabe, Lucas, overdose é feio. É a morte mais digna de pena que existe. Quero sim, morrer drogada, mas não de droga, entende? Quero que olhem para o meu corpo pálido e frio e digam: caralho, essa vadia morreu feliz. Eu acho que quero morrer transando. Sim, isso. Transando. Pode ser com você. Nós dois morremos juntos, transando...
                Não, Letícia, nós morremos, mas não transando. Você que nos matou, atirou uma vez e assassinou dois coelhos. Bang! Bang! Era isso que passava por sua cabeça quando tudo acabou. Quando Letícia se consumiu.
                No fim das contas descobriram que ela tinha mesmo se matado e nem deram muito enfoque ao caso. Ninguém se preocupava com uma drogada estúpida, afinal. Era mais uma ratazana de bueiro, nada demais.
                Lucas nunca mais foi o mesmo. Sentia que tinha perdido algo de si, um complemento que nunca esteve ali de fato, mas parecia estar. Letícia nunca tinha sido dele. Ela era dos prazeres, das drogas, das dores e das emoções. Ele era o errado de tudo isso, no fim. Ele quem tinha errado em superestimar uma relação tão frágil. E consumiu daquilo em demasia, apoderou-se de algo que era demais para ele e explodiu. Explodiu e morreu. Seu corpo se mexia naquela rua onde aconteceu a supernova. Na calçada em que dividiam o medo e a angústia de todo dia sagrado.
                Como tinha sido burro, como tinha. Tinha caído numa armadilha por ele mesmo projetada. Volta, Letícia, volta e me faz triste mais uma vez. Vem me mutilar com seus suspiros e me comer com sua língua áspera. Volta...

                E os dias passavam lentos, queimavam devagar. E demorou a perceber tudo, mas percebeu: tinha morrido de overdose. Overdose de Letícia.
Comentários
1 Comentários

Um comentário:

Bipolar disse...

Caraca, como não gostar desse texto? Cada construção imagétca fantástca, cada frase que mexe realemente com emocinal, a brincadeira cm duas de muitas mortes. Muito bom, talento nato.