Home

quinta-feira, 17 de abril de 2014

cinzas

 
É... A poeira vai se assentando aos poucos. Cobre os móveis em tonalidade nova, torna a televisão à sua cor original: cinza. Deve ser pra combinar com o céu. Deve ser pra combinar com a tempestade solta dentro de mim. Esse meu dadaísmo interno, surrealismo natural. Sou parnasiano, mas nem ligo para a estética desses meus sonetos descompassados e sem rimas ricas.

Você não vem mais, não é? Acho que eu deveria ter descartado essa hipótese há muito tempo. Você deve ter se perdido, deve ter se deixado levar pela correnteza cheia de pessoas vazias... Você deve ter se deixado levar pela frente de ar, afinal, você sempre foi leve ao ponto de flutuar. Escapava sempre pelos dedos; fluidez natureza dos  líquidos, você dizia, me citando Bauman e eu feito bobo ficava ali, contemplando seus lábios articularem cada palavra com um sorriso de prazer...

Eu sempre tive essa mescla de desejo e amor, não é? Não sabia qual era qual. Não sabia se era o impulso de destruição contido naquele ou a preservação sufocante deste. Nunca soube.

Mas o que é o saber racional nesse mar turbulento que é o sentimentalismo? Eu estou muito sentimental ultimamente, amor, tão sentimental que fico me lembrando de você porque ainda, e só ainda, não tem ninguém mais recente. Eu nem teria visto o tempo passar se não fosse a poeira nos móveis.

De repente tudo estava cinza, como se o tempo deixasse minha vida mais grisalha. Velhice sentimental. Emoções esgotadas. Às vezes elas dão uma martelada, mas é só pra colocar as coisas de volta no lugar. Elas não cabem mais aqui, sabe. Quando aparece, eu fico completamente deslocado, completamente fora de contexto, num sofrimento que não tem absolutamente nada a ver com o que está acontecendo.

Nem me lembro mais de como seus cabelos esvoaçavam ao virar as costas, me convidando a te seguir. Só lembro que gostava disso. Nem me lembro de como o tecido fino fazia minha mão deslizar pela sua cintura macia, como uma metáfora perfeita do quanto você teimava em ser escorregadia. Sério, eu não me lembro.

Eu puxo da memória essas coisas que eu sei que aconteciam, e puxo da memória a sensação, mas parece mais que estou imaginando do que recordando. É difícil até mesmo me manter fiel aos acontecimentos, tipo, será que ela fez isso?, ou será que ela disse aquilo?, quais foram mesmo as palavras?, dá pra repetir, por favor?. Um deslize de alguns milímetros para a direita e já estou com lembranças erradas e confusas. E então tenho que ficar organizando as coisas, pensando: primeiro ela fez isso, depois fez aquilo, que é pra eu imaginar com uma precisão capaz de fazer parecer uma lembrança. É como se você nunca tivesse existido.

Mas você existiu, não é? Eu não creio que tudo aquilo que eu não lembro tenha sido somente invenção, uma peça da minha cabeça. Não, acho que você foi um pouco além disso. Mas eu nem me lembro da tua boca colada a minha. Acho que o tempo só passou para mim, pelo visto. Dizem que a gente esquece. Esquece o que mesmo? Dizem que com o tempo, a gente esquece o tempo, esquece o tempo congelado em memórias, nos esquecemos...

Você, agora, me parece uma ilusão dos sentidos. Se eu arrancasse os meus olhos, te veria ainda? Como você se chama, amor? Por que não pega a minha língua para si? Eu permito. Eu não me lembro quem você é, mas deixo você levar mais um pedaço de mim para a viagem. Deixo me amputar dessas lembranças tatuadas na carne, você preferiria assim? Como você gosta do café? Eu prefiro assim, tudo conservado em um lugar mais afastado, lá no fundo da mente, nas prateleiras mais altas de casas sem escadas. Esqueci. Poesias, sentimentos entranhados em carne, tudo... Tudo que é sólido desmancha no ar, mon amour.

Não adianta ser sólido se está quebrado, meu bem. Não adianta ser vivo se está definhando, minha querida. Não adianta ser doce se está podre, meu anjo. E era isso o nosso amor. Um projeto de algo bonito, tão unilateral, tão quebradiço, escorregadio, doente... eu tentei salvá-lo, mas nunca conseguiria fazer isso sozinho. Eu precisava de você, mas onde estava? Porque estar contigo era passar as noites sozinho sem saber se o amanhã seria seu ou da solidão. Era tentar me agarrar a cada momento como se fosse o último – porque bem que poderia ser. E era. Eram muitos os últimos momentos. Era tanto ponto final que virou reticências. Era o constante sentimento de perda.

Você é perda. Nunca foi achado.

Você é mar bravio. Nunca foi acalmado.

Você é encomenda. Um pacote extraviado...

Você é o amor na sua forma mais desesperadora. Mas até pra esse amor o tempo passa, a memória gasta, e a gente vai deslizando pela fluidez que você mesma criou. E eu, meu bem, que fiquei de coadjuvante na nossa própria história, estou tentando protagonizar minha vida sem você.

Fizemos do nosso amor ou desejo, o que preferir, o nosso monólogo. Que gozado, não? Nunca entendi essa tua natureza líquida. Não me adaptei. Não fui globalizado. Não via esperanças nisso e olha só quem se adaptou melhor às feras! Mas a tua fluidez evapora rápido e eu não sei mais se você sequer existiu (vou insistir que sim, para efeitos lógicos).

Você quebrou todas as pontes, até mesmo as pontes bambas das minhas sinapses, para não precisar voltar. Meus pensamentos rompidos, interrompidos e interpelados. Tememos tanto o fim que não percebemos os créditos que subiam e atropelavam tudo que estava no caminho. Agora restam cinzas para o carnaval; talvez eu deixe isso até a próxima quarta. Talvez espere apenas a segunda, para que tudo volte a me assolar a mente.

Um dia esqueço mesmo., deixa as cinzas assentarem nos móveis para combinar com o céu atípico para manhã de carnaval. Deixe-me recolher os fragmentos de lembranças e o pouco que restou. Vou atropelar a avenida em samba puxando o bloco do eu sozinho; me embebedar no bar cheio de pessoas vazias; me corromper nas ruas... Farei algo., e num outro dia de porre, num bar qualquer te escrevo algo, até perder o costume. Até encontrar outro destinatário. Até me encontrar...

Comentários
0 Comentários

Nenhum comentário: