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sábado, 11 de agosto de 2012

Da arte que não é sua (mas foi feita para você)




Há algo seu que vive no limitar do meu existir, Juliete. Algo mordaz, até – e tudo que me faz menos sutil do que eu deveria ser atribuo a você. Oh, mas deixe-me aqui com o seu pequeno pedaço emaranhado nos meus pensamentos mais sombrios sobre o que não somos; deixe-me, Juliete. Deixe-me formulá-la em minha visão distópica e quase distorcida. Sim, distorço-a porque você me complementa. E quase te amo porque você quase me machuca: quase sempre? Talvez.

Comecemos pelo seu olhar: dissimulado. Mas não me deixe compará-la com Capitu – afinal o que seria eu na sua vida, um Bentinho sem-um-Dom-na-frente-do-nome? Um Escobar sem um melhor amigo para trair? Mas ninguém traiu ninguém – só os seus olhos. Porque eles são traidores, Juliete. São enormes janelas escuras que no máximo vivem entreabertas para a minha curiosidade de desvendá-la. Mas você é uma esfinge que aos poucos me devora, sabe bem, não ligo. Não ligo de não saber nada desse seu olhar torto, correndo para longe do meu enquanto o que quer é só chegar mais perto. Oblíqua. Daquele tipo que envolve e vai embora, deixando-me a mercê da sua troça ainda infantil. Brinque comigo, afinal o Principezinho cansou-se do nosso divertimento repetitivo. Eu, você e o Universo curvado na linha do seu olhar que não sabe mentir – mas mente para mim, porque você é toda mentira. E eu sou toda a negação contida em você.

Olhe Juliete, se eu fosse um pintor cobriria uma tela inteira com carvão e dedos trêmulos só para imortalizá-la a minha maneira. Mas faz tempo que larguei os afrescos e agarrei-me às letras como se minha alma dependesse desse ato de curvar palavras para não sujar-me. Eu falhei, Juliete. Nós falhamos. Falhamos porque as palavras nos fizeram pecadores de nós mesmos, nesse show de horror em que a única claridade vem dos seus olhos tão enegrecidos! Nessa atração de café e nicotina que é você vislumbrei-me perdido entre suas facetas angelicalmente demoníacas. Por que você não me salva, Juliete? Oh, mas você nem pode salvar-se, então permaneceremos no nosso quarto cinza: você com seus olhos enegrecidos e eu com os meus confortavelmente entorpecidos por não saberem mais do que você permite.

Então tranque-se nesse quarto acabando com o estoque de cigarros e pó de café. Um dia eu volto para tentar salvá-la de si mesma, quem sabe dessa vez eu tenha sucesso? Mas vamos continuar sua pintura sem pinceladas ou tela – uma pintura dos meus olhos que vez ou outra cansam de observar você. Mas ainda observo. Observo a cachoeira dos seus fios também negros emoldurando seu rosto com a mesma desordem que você mantém os discos no flat empoeirado. Você é toda caos.

Esconda-se; assim, à sua maneira, como se estivesse fugindo de mim que também sou você.  Enrole a grosseria dos seus cabelos de caracóis em um elástico qualquer e faça-os refém da sua própria falta de liberdade. Já que não merecemos liberdade, fiquemos somente com as prisões que nós mesmos criamos – onde o quarto cinza não me deixa observar a tonalidade mesclada da sua pele tostada em tons de sol queimando que não arde mais. Sua pele dói em mim; como toda você.

Não abrace meu corpo com seus braços acobreados. Deixa-me longe dos seus afagos insuficientes, ora, bem sabe que desgosto desses contatos que exploram minha pele contra a sua em noites que não deveriam existir. Permita-me somente observá-la sobre minha ótica a mordiscar indecentemente a tampa de uma caneta que não cumpre os seus infortúnios em forma de pensamento, meu cigarro queimando entre seus dedos enquanto o seu tabaco arde no cinzeiro ao lado. Você não quer sabores – dessa vez prefere a crueldade e a falta de algo que só eu posso oferecer.

Fique assim, Juliete, com seus fantasmas e o remexer desconfortável na cadeira enquanto o dia não vem. O amanhecer é eterno; tal qual nosso desgostar. Desgoste de mim por ter quebrado a máquina de escrever – desgoste de mim por ter Paris enquanto não tenho nem a mim. Porém, quem sou eu para impor desgostos à sua falta de gostar? Perdoe-me pela intromissão que a perdoo por não saber perdoar.

E viva Juliete. Viva no limiar do meu existir – como se fosse uma tatuagem moldada em meu corpo sonolento e ébrio. Caminha descalça com seus passos pesados e acorda-me antes do sol levantar; sabemos que você perde o sono enquanto eu resvalo nas garrafas que tornei vazias: assim como nós.

Vivemos assim vazios de nós mesmos, contudo cheios de outrem! Eu cheio de você e você cheia de mim. E não ligue para ambiguidades, afinal, Juliete, quem disse que um texto não deve causar confusão foram os mesmos que quiseram enquadrar poesias? O caos é uma arte que é toda você.

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