Há algo seu que vive no limitar do meu existir, Juliete. Algo mordaz, até –
e tudo que me faz menos sutil do que eu deveria ser atribuo a você. Oh, mas
deixe-me aqui com o seu pequeno pedaço emaranhado nos meus pensamentos mais
sombrios sobre o que não somos; deixe-me, Juliete. Deixe-me formulá-la em
minha visão distópica e quase distorcida. Sim, distorço-a porque você me
complementa. E quase te amo porque você quase me machuca: quase sempre? Talvez.
Comecemos pelo seu olhar: dissimulado. Mas não me deixe compará-la com
Capitu – afinal o que seria eu na sua vida, um Bentinho sem-um-Dom-na-frente-do-nome?
Um Escobar sem um melhor amigo para trair? Mas ninguém traiu ninguém – só os
seus olhos. Porque eles são traidores, Juliete. São enormes janelas escuras que
no máximo vivem entreabertas para a minha curiosidade de desvendá-la. Mas você
é uma esfinge que aos poucos me devora, sabe bem, não ligo. Não ligo de não saber
nada desse seu olhar torto, correndo para longe do meu enquanto o que quer é só
chegar mais perto. Oblíqua. Daquele
tipo que envolve e vai embora, deixando-me a mercê da sua troça ainda infantil. Brinque comigo, afinal o Principezinho cansou-se do nosso divertimento
repetitivo. Eu, você e o Universo curvado na linha do seu olhar que não sabe
mentir – mas mente para mim, porque você é toda mentira. E eu sou toda a
negação contida em você.
Olhe Juliete, se
eu fosse um pintor cobriria uma tela inteira com carvão e dedos trêmulos só
para imortalizá-la a minha maneira. Mas faz tempo que larguei os afrescos e agarrei-me
às letras como se minha alma dependesse desse ato de curvar palavras para não
sujar-me. Eu falhei, Juliete. Nós falhamos. Falhamos porque as palavras nos
fizeram pecadores de nós mesmos, nesse show de horror em que a única claridade
vem dos seus olhos tão enegrecidos! Nessa atração de café e nicotina que é você
vislumbrei-me perdido entre suas facetas angelicalmente demoníacas. Por que
você não me salva, Juliete? Oh, mas você nem pode salvar-se, então
permaneceremos no nosso quarto cinza: você com seus olhos enegrecidos e eu com
os meus confortavelmente entorpecidos por não saberem mais do que você permite.
Então tranque-se
nesse quarto acabando com o estoque de cigarros e pó de café. Um dia eu volto
para tentar salvá-la de si mesma, quem sabe dessa vez eu tenha sucesso? Mas
vamos continuar sua pintura sem pinceladas ou tela – uma pintura dos meus olhos
que vez ou outra cansam de observar você. Mas ainda observo. Observo a
cachoeira dos seus fios também negros emoldurando seu rosto com a mesma
desordem que você mantém os discos no flat empoeirado. Você é toda caos.
Esconda-se;
assim, à sua maneira, como se estivesse fugindo de mim que também sou
você. Enrole a grosseria dos seus
cabelos de caracóis em um elástico qualquer e faça-os refém da sua própria
falta de liberdade. Já que não merecemos liberdade, fiquemos somente com as
prisões que nós mesmos criamos – onde o quarto cinza não me deixa observar a
tonalidade mesclada da sua pele tostada em tons de sol queimando que não arde
mais. Sua pele dói em mim; como toda você.
Não abrace meu
corpo com seus braços acobreados. Deixa-me longe dos seus afagos insuficientes,
ora, bem sabe que desgosto desses contatos que exploram minha pele contra a sua
em noites que não deveriam existir. Permita-me somente observá-la sobre minha ótica
a mordiscar indecentemente a tampa de uma caneta que não cumpre os seus
infortúnios em forma de pensamento, meu cigarro queimando entre seus dedos
enquanto o seu tabaco arde no cinzeiro ao lado. Você não quer sabores –
dessa vez prefere a crueldade e a falta de algo que só eu posso oferecer.
Fique assim,
Juliete, com seus fantasmas e o remexer desconfortável na cadeira enquanto o
dia não vem. O amanhecer é eterno; tal qual nosso desgostar. Desgoste de mim
por ter quebrado a máquina de escrever – desgoste de mim por ter Paris enquanto
não tenho nem a mim. Porém, quem sou eu para impor desgostos à sua falta de
gostar? Perdoe-me pela intromissão que a perdoo por não saber perdoar.
E viva Juliete.
Viva no limiar do meu existir – como se fosse uma tatuagem moldada em meu corpo
sonolento e ébrio. Caminha descalça com seus passos pesados e acorda-me antes
do sol levantar; sabemos que você perde o sono enquanto eu resvalo nas garrafas
que tornei vazias: assim como nós.
Vivemos assim
vazios de nós mesmos, contudo cheios de outrem! Eu cheio de você e você cheia
de mim. E não ligue para ambiguidades, afinal, Juliete, quem disse que um texto
não deve causar confusão foram os mesmos que quiseram enquadrar poesias? O caos
é uma arte que é toda você.