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sábado, 22 de setembro de 2012

Da mente que sempre sucumbe ao amor



Ela mergulhou no amor.

Sem saber o que era o sentimento jogou-se de cabeça no infinito do olhar que resiste até o último segundo do adeus. Imergiu. Os olhos se fecharam com força e quando abriram-se para-lá-do-mundo encontraram a escuridão que não vivia na claridade daquele olhar que aprendera a chamar de seu. Mas toda luz precisa do negrume, não é? Então assim viu-se sozinha com o amor a rodeá-la, sentindo-o em cada pequeno pedaço do seu corpo sucumbido a ele e por ele. Pelos desejos, vontades e caprichos de ser amada, pela estranha sensação de não pertencer-se. Era dele, a mergulhadora de amores. Era dele, como de mais ninguém seria.

Oh, mas não tinha face o que sentia! Tinha somente claridade, escuridão e vontade. Sim, vontade de ir mais fundo e desvendá-lo para todo o sempre, de tê-lo contra seus olhos de cor tão desimportante. Se o olhar dela tivesse importância poderia ser ciano como um dia fora o mar em que aprendeu a nadar. Nadava no mar e afogava-se em amor, pois o amor troçava de todo seu corpo, brincando com o limiar de sua vida e morte.

Contra o pulmão faltava-lhe ar e sobrava desatenção.

E desatenta buscava o fundo com ânsia, enquanto o amor jogava-lhe para a superfície. Não queria os começos, bastavam-lhe os meios e os fins com suas reviravoltas e inconstâncias, se queria buscava-os com todo afinco mergulhando cada vez mais para a escuridão dum amor de olhos claros. Quando deu por si estava às cegas tateando um fim que nunca chegaria, trôpega, como se em seus poros o amor resolvesse infiltrar-se e embevecê-la em insanidade e desejos inacessíveis.

Assim cada vez mais tresloucada ela procurava o fim inexistente, mas retornava aos inícios e gracejos de um amor desbaratado pelos próprios amantes. O fim era o começo que também era o próprio término. Um ciclo de amor e afogamentos onde respirar é desnecessário, precisa-se somente sentir o torpor da escuridão de olhos claros rasgando a pele e invadindo camada por camada da mente daquela que causou a fúria na Vênus renascida de rancor e beleza. O amor sucumbiu com a mente de Psiquê.

(...)
Psiquê mergulhou em Eros.

Sem saber o que ele era jogou-se de cabeça no infinito do olhar que resiste até o último segundo do adeus. Emergiu. Os olhos abriram-se e deu-se então o Caos – a alma sempre dobrar-se-ia ao amor. 

sábado, 8 de setembro de 2012

Em tons bucólicos de Daniel



         Brincava com o mundo nas mãos, iludindo o pensamento que poderia controlá-lo ao seu modo.


         O grande orbe girava em seus dedos calejados, carregando toda uma vida dividia entre  livros e o trabalho pesado com o ausente pai no casebre campestre; naqueles tempos, o maior tesouro da família. Riu com orgulho. Antigamente enchia o peito com ansiosa vontade de ser feliz, dobrar o mundo aos seus pés, com o talento natural que somente as crianças têm de sonhar despudoradamente.

         Dominava o globo à sua maneira, sua mente invertia polos, juntava continentes, retomando o mundo a Pangeia, para dominá-lo como verdadeiro megalomaníaco que sempre quis ser. Uma mentira de criança nas mãos dum adulto, nostalgias da infância bem vivida.

         Com o mundo entre os dedos, sentia-se mais do que realizado. Ria com orgulho do seu feito, enquanto o filho mais moço devorava com inexatidão um livrinho infanto-juvenil qualquer. Um best-seler sem conteúdo, vazio demais para a prole de um sonhador com o mundo em seu enlace.

         Mas o conteúdo do livro poderia ser qualquer um, bastava que o menino estivesse ao alcance do seu olhar, trazendo a sua mente insensata recordações da infância entre as plantações, carregando uma coleção de livros antigos. De “Reinações de Narizinho” à "Morangos Mofados", nada fugia ao seu olhar devorador.

         Talvez, isso viria do fato de um dia querer conquistar o inatingível. Seu império deveria ter um começo. Se conseguisse dominar o conhecimento daquelas páginas envelhecidas, certamente dominaria o mundo e todas as suas nunces! Acreditava nisso fielmente; assim continuava lendo, enquanto o sol castigava-lhe a mente infantil.

         Os dedos sujos de terra úmida abriam os livros com rapidez, acreditando que decorando aquelas páginas teria o mundo aos seus pés. Em sua biblioteca iluminada pelo sol, o homem lembrava do utópico sonho, que veladamente ainda almejava realizar (ou talvez não, nessas horas, não sabe-se de muitas coisas), só para sentir ainda mais o ocre do saudosismo entre lábios tão maculados.

         Jurava que sentia a umidade da terra em suas unhas. Acompanhada com aroma dos livros mofados e mato crescente, tão nostálgico que o fazia fechar os olhos com força, esquecendo do mundo que controlava num toque sutil. Entre a nostalgia e o resto do mundo,  preferiu sorrir para suas ilusórias (mas tão reais) recordações, como um bom pai que vive a sorrir para seus filhos.

         Assim, sorriu como há muito não permitia-se, nadando confuso na própria mente, mentindo que um dia teve sim o mundo em seus domínios! Oh!, como saberia ser ilusório e iludido o pretendente a dono-do-mundo! Um homem sério que renovou nos olhos o brilho do seu mundo – que só resumia-se a livros mofados e palavras rebuscadas.

         Naquele tempo a saudade não existia, pois sabia viver somente o ato em seu tempo normal. Correr pelo gramado, pisar nas formigas-de-fogo, colher a horta, ser criança e ler avidamente, era só isso que cabia em suas ações, nada mais do que simplesmente viver de modo infantil e sonhador, como seu filho agora fazia (mesmo que de um modo diferente).

         Com os olhos pregados no livro que lia, o filho seguia os passos do pai, pronto para crescer iludido entre seus reprimidos desejos infantis! Fantasiando que aqueles seres mitológicos e distorcidos existiam na realidade dos seus pés correndo pela casa fincada no meio dum asfalto quente e impessoal. Não havia nada de bucólico naquela cidade grande, talvez só as recordações infantis assolando a mente crescida de um ex-menino.

         Gostava de pensar que poderia ser um eterno “ex”. De ex-dono do mundo até ex-sonhador, mas nunca (nem eu seus mais utópicos devaneios) cogitou ser um ex-menino. O som agradava-o tanto! Talvez seja um eufemismo descarado para não sentir o peso do tempo enrugando-lhe a pele que outrora fora esticada e lisa. Na verdade, ele não chegava a ser idoso, mesmo tendo passado a linha dos trinta e três, não sabia se queria envelhecer mais.

         Em seu tempo de criança nunca imaginou-se velho. Seu pensamento levava-o somente aos vinte e dois anos, copos de whisky nunca outrora provados e a dominação mundial. Dentro de suas páginas amareladas tornou-se um verdadeiro Napoleão, só faltava-lhe os belos quadros e as realizações históricas.

         Os outros moleques desordeiros riam do seu devaneio utópico. “O mundo é grande demais para você, Daniel”, comentavam enquanto esvaziavam pneus dos carros visitantes distantes que até ali chegavam. Quando ouvia essa ele deixava-se abater, afinal, o planeta era realmente uma imensa esfera e ele ainda um menino devorador de livros. “Mas se eu não puder ter o mundo, o que terei?” O pensamento divagava nessas horas e nunca chegava a uma conclusão.

         Com fios perdidos de pensamento, Daniel cresceu. Da infância trouxe sonhos perdidos e palavras encontradas, a terra entre os dedos e a vontade de sentir o whisky descendo-lhe pela garganta. Fez dezessete e furtivamente do whisky provou. Gostou do sabor e da queimação. Como quem realizava um sonho tomou várias doses depois dessa e a dominação mundial virou somente uma alienação infantil.

         O filho acabou a leitura e saiu da biblioteca, fazendo sua mente parar. Viu os próprios passos refletidos no filho, um andar apresado, mas ainda assim calmo. Sozinho em sua habitual estranheza o homem permitiu-se gargalhar alto, achando tão incomum que só agora tivesse reparado que o próprio filho era um espelho seu! Um verdadeiro filho de alguém que um dia quis dominar o indominável.

         Como quem não quer mais o mundo deixou o globo cair no chão e quebrar-se em mil e um pedaços. Ganhando uma beleza até então desconhecida pelos olhos semi-cansados de um devaneador bucólico composto em vários tons de nostalgia.

         Agora ele não precisava mais brincar com o globo nas mãos para iludir o pensamento. Tinha um Universo inteiro que já poderia chamar de seu.


         (um universo de passos apressados, livros infanto-juvenis e queimação)
          

sábado, 25 de agosto de 2012

De Johnny a Humbert





O escritor ainda escreve e o menino ainda não bebe.

Os dedos digitam rápidos na máquina de escrever, relatando o passado ao lado daquele amigo que por anos foi seu companheiro de alma, mas agora só o visita periodicamente, atrapalhando suas memórias a fluírem para o papel envelhecido.

- Sente-se, Johnny, já não está alto o bastante para a idade? - Argumentou o mais velho, que entre aquelas paredes era chamado de Humbert, diferente do nome em que era estampado nos livros sujos que uma editora pequena publicava.

- E você, não trabalha demais para a idade? - Perguntou o menino-quase-homem, que com seus dezesseis anos já sabia discordar daquele que tinha visto muitas coisas para deixá-las presas em sua memória.
- Escrever não é só um trabalho, John, é uma maneira de vida.

- Você às vezes é literário demais, já lhe disseram isso? - Comentou com a voz perdida que sempre usava para irritar o amigo que teimava em ter as letras como suas principais companheiras.

- Já. Desde o tempo em que essa casa velha era somente uma casa. - Riu da própria frase, vendo o amigo cair nas próprias memórias e não recordar daquele casarão antigo em toda sua beleza. Johnny tinha conhecido aquela casa já daquela forma, com as paredes descascando, os vidros quebrados e um pequeno leitor devorando livros como a morte devora almas.

 - Eu não me lembro dessa casa nova, somente lembro-me de você lendo compulsivamente os livros que um dia foram do seu avô em um quarto com goteiras e infiltrações. - Despejou o menino suas memórias para o homem literário demais, que ouvia atentamente sem conseguir digitar uma letra sobre o papel que esperava ansioso suas memórias serem ali gravadas.

- E eu me lembro de você muito mais novo do que eu, largando o carrinho de rolimã para ouvir vinis antigos comigo.

Johnny poderia tentar modificar em sua mente aquela cena, mas seria errado demais não recordar com perfeição as cenas que ele e Humbert viveram entre os muros envelhecidos daquela casa arruinada que serviu de palco para as aventuras de um pequeno leitor e um pequeno menino.

O barulho da máquina de escrever voltou a assombrar o ambiente e o garoto Johnny não ousaria quebrar aquele som de palavras sendo escritas, criando uma história tão decadente quanto o passado do escritor que só parava para fumar seu cigarro de canela e observar o melhor amigo, agora mais um visitante, a pisar no mármore sujo da casa que um dia teve sua glória.

- Ouça John, nunca seja tão idiota quanto eu para vender a única coisa que te faz feliz a qualquer um que oferecer uns poucos centavos. - Começou a falar o escritor, oferecendo o cigarro para o menino que curioso o pegou em seus dedos, mas não tragou. - Eu antes escrevia para sentir-me vivo; importante, me destacar na multidão que sempre quis me apunhalar e me chamar de estranho, menos você, é claro.

- Eu também fui esquecido e renegado, Humbert. Mas você e o violão conseguiram me salvar, mesmo que agora eu não me recorde de um mísero acorde de “Strawberry Fields Forever”, o hino mais estranho que um menino de nove anos poderia ter. - Falou o garoto, envolvendo um cigarro pela primeira vez entre seus lábios vermelhos de dezesseis anos.

- Você teve a música, mas foi mais idiota ou esperto do que eu e a abandonou. Eu continuei entre versos, prosa e metáforas. Minha salvação me desgraçou, John. Minha virtude se tornou um vício mais maldito do que esse cigarro que dividimos! Escrever não é simplesmente despejar memórias imutáveis que nunca aconteceram em um papel amarelado. É uma benção que um dia te colocará no fundo do seu próprio poço, onde o único caminho é para baixo, pois ir contra ela seria a verdadeira insanidade. - Quando acabou de falar, Humbert arfava, os dedos tremiam e os lábios curvavam-se para o cigarro que tinha acabado de furtar dos lábios de um menino desacostumado com o fumo.

Johnny permaneceu calado, analisando as falas que poderiam sair dos seus lábios, mas a única coisa que conseguiu fazer foi roubar o cigarro do mais velho e voltar a fumar com a tosse atrapalhando-o a conquistar um novo vício.

 - Se você não tivesse sido um ávido leitor, não teria esse pecado fantasiado de virtude. - Comentou o ex-músico com o gosto do cigarro entre seus dentes brancos.

- Não pense em como as coisas deveriam ter sido, John. Sem as palavras eu não seria nada, nem esse maltrapilho que sou hoje. Foram elas que me trouxeram até aqui e isso eu não posso negar.

- Eu nunca te pediria isso, Humbert.

- Você não, mas talvez o resto do mundo.

O silêncio voltou para ser novamente quebrado pelo som das palavras sendo escritas.

E quando anoiteceu, Johnny voltou para distância que os separavam, deixando um escritor com todas as suas máculas e um passado que sempre o perseguiria.

Pois entre os muros daquela casa velha, a única coisa que ficaria de pé seriam as memórias eternizadas em palavras. De Johnny e Humbert.

sábado, 18 de agosto de 2012

De um James Dean de olhos de piscina




A primeira tragada o fez tossir; a segunda o libertou.

Deixou-se levar pela fumaça que brincava ao seu redor – o cheiro não agradava; cigarro-sem-sabor; cigarro-de-alguém-que-não-se-importa-mais, pensou, mesmo não sabendo com o quê não deveria mais se importar. Talvez com ele mesmo, mas, antes que a resposta fosse concluída, tragou mais uma vez. Liberdade para dentro do corpo e depois espiralada para o mundo, agora era assim que Amaro observava as coisas.

Dentro dele vivia essa vontade de libertar-se; de abrir as próprias asas para o céu que quisesse e não somente o que a mãe coloria em tons de ciano e nuvens brancas. Amaro queria o próprio céu – mesmo que nem soubesse voar. Do alto dos seus dezessete anos, Amaro tornou-se livre com a segunda tragada em um cigarro furtado da bolsa de uma senhora qualquer. Cigarro forte, de filtro vermelho e insípido. Talvez ele preferisse os de menta, os garotos da escola sempre comentavam dos mentolados que refrescavam o céu da boca, deixando-os preparados para os beijos das menininhas de saias pregueadas curtas demais para uniforme escolar. Amaro desconfiava que elas vestiam as mesmas que receberam quando tinham doze anos, só para provocar. Meninas de dezesseis com saias curtas demais sempre seriam uma tentação.

Assim como o cigarro.

Brincava com o fumo entre o polegar e o indicador, segurando-o com força para não escapar de seus dedos, trêmulos por estar dentro do banheiro da escola com um cigarro acesso. Cigarro-de-alguém-que-não-se-importa-mais, retomou de volta seu pensamento leviano e mal trabalhado e realmente não quis importar-se. E quando fosse pego saberia o que fazer, fumaria o cigarro até o fim, deixando o zelador esperando-o na porta do banheiro com olhos vorazes e indignação. Na sua mente a cena seria perfeita: o primogênito de sete meninas loiras, dentes brancos, corpos esguios e boa educação era um transgressor! Um desvairado que matava aulas trancado no banheiro com seu fumo furtado. E todos se perguntariam o que aconteceu para o menino perfeitinho de jeans bem lavados e camisas engomadas que levava as irmãs para escola. Onde ele vive agora?

Olhou-se no espelho. Procurou o antigo Amaro e encontrou-o ainda vivo no fundo dos seus olhos azuis. Riu da própria aparência metódica e arrumada. Nos cabelos loiros mantinha o mesmo penteado que a mãe ensinara quando criança ainda no tempo em que o sofá da sala era o marrom-desbotado-que-todos-podiam-pular-em-cima. Despenteou-se com o cigarro entre os lábios, desprendendo-se da máscara de menino doce que usara tantos anos. Porque no fundo Amaro não era doce. Amaro era amargo como o tabaco que fumava displicentemente.  Nele não existia o agridoce comum a algumas pessoas (como Morgana, uma de suas irmãs), ele era a amargura desconfortável que causa repudia – mas que mesmo assim todos carregam nos lábios rachados e empalidecidos. Era o que nasceu para ser.

Amargo Amaro.

Os olhos azuis transfiguravam-se em apatia. Duas piscinas fundas demais para uma construção superficial. Ora, ele ainda era um clichê de cabelos desgrenhados e barra de jeans dobradas. Precisava de mais. Queria a insegurança do mundo, os perigos, a violências e as nuances em preto, branco e cinza. Almejava todos os acordes que não conhecia e todas as canções que pudesse lembrar. Queria-se em tudo, mesmo sendo nada.

E o azul apático desafiando-o pelo espelho.

Era um menino comum esse Amaro olhando-se fixamente. Era um menino incomum esse Amaro que fumava cigarros furtados. Era quase um homem, esse Amaro. De jeans perfeitamente passados e camisa branca de linho. Quase não era ele, esse Amaro. O de cabelo desgrenhado era ele – pelo menos uma parte. A outra metade ainda estava trancafiada dentro do corpo de normalidade e vamos-seguir-as-regras-do-mundo. Tornar-se-ia o verdadeiro Amaro quando conhecesse as bebidas, as bandas, o violão e o aroma de fumaça e antiga misturada com a colônia que o pai não usava mais. Tornar-se-ia mais amargo.

A última tragada o matou; o apagar do cigarro o renasceu. 

sábado, 11 de agosto de 2012

Da arte que não é sua (mas foi feita para você)




Há algo seu que vive no limitar do meu existir, Juliete. Algo mordaz, até – e tudo que me faz menos sutil do que eu deveria ser atribuo a você. Oh, mas deixe-me aqui com o seu pequeno pedaço emaranhado nos meus pensamentos mais sombrios sobre o que não somos; deixe-me, Juliete. Deixe-me formulá-la em minha visão distópica e quase distorcida. Sim, distorço-a porque você me complementa. E quase te amo porque você quase me machuca: quase sempre? Talvez.

Comecemos pelo seu olhar: dissimulado. Mas não me deixe compará-la com Capitu – afinal o que seria eu na sua vida, um Bentinho sem-um-Dom-na-frente-do-nome? Um Escobar sem um melhor amigo para trair? Mas ninguém traiu ninguém – só os seus olhos. Porque eles são traidores, Juliete. São enormes janelas escuras que no máximo vivem entreabertas para a minha curiosidade de desvendá-la. Mas você é uma esfinge que aos poucos me devora, sabe bem, não ligo. Não ligo de não saber nada desse seu olhar torto, correndo para longe do meu enquanto o que quer é só chegar mais perto. Oblíqua. Daquele tipo que envolve e vai embora, deixando-me a mercê da sua troça ainda infantil. Brinque comigo, afinal o Principezinho cansou-se do nosso divertimento repetitivo. Eu, você e o Universo curvado na linha do seu olhar que não sabe mentir – mas mente para mim, porque você é toda mentira. E eu sou toda a negação contida em você.

Olhe Juliete, se eu fosse um pintor cobriria uma tela inteira com carvão e dedos trêmulos só para imortalizá-la a minha maneira. Mas faz tempo que larguei os afrescos e agarrei-me às letras como se minha alma dependesse desse ato de curvar palavras para não sujar-me. Eu falhei, Juliete. Nós falhamos. Falhamos porque as palavras nos fizeram pecadores de nós mesmos, nesse show de horror em que a única claridade vem dos seus olhos tão enegrecidos! Nessa atração de café e nicotina que é você vislumbrei-me perdido entre suas facetas angelicalmente demoníacas. Por que você não me salva, Juliete? Oh, mas você nem pode salvar-se, então permaneceremos no nosso quarto cinza: você com seus olhos enegrecidos e eu com os meus confortavelmente entorpecidos por não saberem mais do que você permite.

Então tranque-se nesse quarto acabando com o estoque de cigarros e pó de café. Um dia eu volto para tentar salvá-la de si mesma, quem sabe dessa vez eu tenha sucesso? Mas vamos continuar sua pintura sem pinceladas ou tela – uma pintura dos meus olhos que vez ou outra cansam de observar você. Mas ainda observo. Observo a cachoeira dos seus fios também negros emoldurando seu rosto com a mesma desordem que você mantém os discos no flat empoeirado. Você é toda caos.

Esconda-se; assim, à sua maneira, como se estivesse fugindo de mim que também sou você.  Enrole a grosseria dos seus cabelos de caracóis em um elástico qualquer e faça-os refém da sua própria falta de liberdade. Já que não merecemos liberdade, fiquemos somente com as prisões que nós mesmos criamos – onde o quarto cinza não me deixa observar a tonalidade mesclada da sua pele tostada em tons de sol queimando que não arde mais. Sua pele dói em mim; como toda você.

Não abrace meu corpo com seus braços acobreados. Deixa-me longe dos seus afagos insuficientes, ora, bem sabe que desgosto desses contatos que exploram minha pele contra a sua em noites que não deveriam existir. Permita-me somente observá-la sobre minha ótica a mordiscar indecentemente a tampa de uma caneta que não cumpre os seus infortúnios em forma de pensamento, meu cigarro queimando entre seus dedos enquanto o seu tabaco arde no cinzeiro ao lado. Você não quer sabores – dessa vez prefere a crueldade e a falta de algo que só eu posso oferecer.

Fique assim, Juliete, com seus fantasmas e o remexer desconfortável na cadeira enquanto o dia não vem. O amanhecer é eterno; tal qual nosso desgostar. Desgoste de mim por ter quebrado a máquina de escrever – desgoste de mim por ter Paris enquanto não tenho nem a mim. Porém, quem sou eu para impor desgostos à sua falta de gostar? Perdoe-me pela intromissão que a perdoo por não saber perdoar.

E viva Juliete. Viva no limiar do meu existir – como se fosse uma tatuagem moldada em meu corpo sonolento e ébrio. Caminha descalça com seus passos pesados e acorda-me antes do sol levantar; sabemos que você perde o sono enquanto eu resvalo nas garrafas que tornei vazias: assim como nós.

Vivemos assim vazios de nós mesmos, contudo cheios de outrem! Eu cheio de você e você cheia de mim. E não ligue para ambiguidades, afinal, Juliete, quem disse que um texto não deve causar confusão foram os mesmos que quiseram enquadrar poesias? O caos é uma arte que é toda você.