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sábado, 8 de setembro de 2012

Em tons bucólicos de Daniel



         Brincava com o mundo nas mãos, iludindo o pensamento que poderia controlá-lo ao seu modo.


         O grande orbe girava em seus dedos calejados, carregando toda uma vida dividia entre  livros e o trabalho pesado com o ausente pai no casebre campestre; naqueles tempos, o maior tesouro da família. Riu com orgulho. Antigamente enchia o peito com ansiosa vontade de ser feliz, dobrar o mundo aos seus pés, com o talento natural que somente as crianças têm de sonhar despudoradamente.

         Dominava o globo à sua maneira, sua mente invertia polos, juntava continentes, retomando o mundo a Pangeia, para dominá-lo como verdadeiro megalomaníaco que sempre quis ser. Uma mentira de criança nas mãos dum adulto, nostalgias da infância bem vivida.

         Com o mundo entre os dedos, sentia-se mais do que realizado. Ria com orgulho do seu feito, enquanto o filho mais moço devorava com inexatidão um livrinho infanto-juvenil qualquer. Um best-seler sem conteúdo, vazio demais para a prole de um sonhador com o mundo em seu enlace.

         Mas o conteúdo do livro poderia ser qualquer um, bastava que o menino estivesse ao alcance do seu olhar, trazendo a sua mente insensata recordações da infância entre as plantações, carregando uma coleção de livros antigos. De “Reinações de Narizinho” à "Morangos Mofados", nada fugia ao seu olhar devorador.

         Talvez, isso viria do fato de um dia querer conquistar o inatingível. Seu império deveria ter um começo. Se conseguisse dominar o conhecimento daquelas páginas envelhecidas, certamente dominaria o mundo e todas as suas nunces! Acreditava nisso fielmente; assim continuava lendo, enquanto o sol castigava-lhe a mente infantil.

         Os dedos sujos de terra úmida abriam os livros com rapidez, acreditando que decorando aquelas páginas teria o mundo aos seus pés. Em sua biblioteca iluminada pelo sol, o homem lembrava do utópico sonho, que veladamente ainda almejava realizar (ou talvez não, nessas horas, não sabe-se de muitas coisas), só para sentir ainda mais o ocre do saudosismo entre lábios tão maculados.

         Jurava que sentia a umidade da terra em suas unhas. Acompanhada com aroma dos livros mofados e mato crescente, tão nostálgico que o fazia fechar os olhos com força, esquecendo do mundo que controlava num toque sutil. Entre a nostalgia e o resto do mundo,  preferiu sorrir para suas ilusórias (mas tão reais) recordações, como um bom pai que vive a sorrir para seus filhos.

         Assim, sorriu como há muito não permitia-se, nadando confuso na própria mente, mentindo que um dia teve sim o mundo em seus domínios! Oh!, como saberia ser ilusório e iludido o pretendente a dono-do-mundo! Um homem sério que renovou nos olhos o brilho do seu mundo – que só resumia-se a livros mofados e palavras rebuscadas.

         Naquele tempo a saudade não existia, pois sabia viver somente o ato em seu tempo normal. Correr pelo gramado, pisar nas formigas-de-fogo, colher a horta, ser criança e ler avidamente, era só isso que cabia em suas ações, nada mais do que simplesmente viver de modo infantil e sonhador, como seu filho agora fazia (mesmo que de um modo diferente).

         Com os olhos pregados no livro que lia, o filho seguia os passos do pai, pronto para crescer iludido entre seus reprimidos desejos infantis! Fantasiando que aqueles seres mitológicos e distorcidos existiam na realidade dos seus pés correndo pela casa fincada no meio dum asfalto quente e impessoal. Não havia nada de bucólico naquela cidade grande, talvez só as recordações infantis assolando a mente crescida de um ex-menino.

         Gostava de pensar que poderia ser um eterno “ex”. De ex-dono do mundo até ex-sonhador, mas nunca (nem eu seus mais utópicos devaneios) cogitou ser um ex-menino. O som agradava-o tanto! Talvez seja um eufemismo descarado para não sentir o peso do tempo enrugando-lhe a pele que outrora fora esticada e lisa. Na verdade, ele não chegava a ser idoso, mesmo tendo passado a linha dos trinta e três, não sabia se queria envelhecer mais.

         Em seu tempo de criança nunca imaginou-se velho. Seu pensamento levava-o somente aos vinte e dois anos, copos de whisky nunca outrora provados e a dominação mundial. Dentro de suas páginas amareladas tornou-se um verdadeiro Napoleão, só faltava-lhe os belos quadros e as realizações históricas.

         Os outros moleques desordeiros riam do seu devaneio utópico. “O mundo é grande demais para você, Daniel”, comentavam enquanto esvaziavam pneus dos carros visitantes distantes que até ali chegavam. Quando ouvia essa ele deixava-se abater, afinal, o planeta era realmente uma imensa esfera e ele ainda um menino devorador de livros. “Mas se eu não puder ter o mundo, o que terei?” O pensamento divagava nessas horas e nunca chegava a uma conclusão.

         Com fios perdidos de pensamento, Daniel cresceu. Da infância trouxe sonhos perdidos e palavras encontradas, a terra entre os dedos e a vontade de sentir o whisky descendo-lhe pela garganta. Fez dezessete e furtivamente do whisky provou. Gostou do sabor e da queimação. Como quem realizava um sonho tomou várias doses depois dessa e a dominação mundial virou somente uma alienação infantil.

         O filho acabou a leitura e saiu da biblioteca, fazendo sua mente parar. Viu os próprios passos refletidos no filho, um andar apresado, mas ainda assim calmo. Sozinho em sua habitual estranheza o homem permitiu-se gargalhar alto, achando tão incomum que só agora tivesse reparado que o próprio filho era um espelho seu! Um verdadeiro filho de alguém que um dia quis dominar o indominável.

         Como quem não quer mais o mundo deixou o globo cair no chão e quebrar-se em mil e um pedaços. Ganhando uma beleza até então desconhecida pelos olhos semi-cansados de um devaneador bucólico composto em vários tons de nostalgia.

         Agora ele não precisava mais brincar com o globo nas mãos para iludir o pensamento. Tinha um Universo inteiro que já poderia chamar de seu.


         (um universo de passos apressados, livros infanto-juvenis e queimação)
          
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