Com toda certeza o leitor há
de encontrar aqui, em algum lugar, um bom conto. Poderá saboreá-lo, apreciá-lo,
degustar de seus detalhes, das palavras escolhidas... Em algum lugar, com
certeza; mas suponho que só depois que eu terminar e for embora.
Antes de qualquer coisa, porém
– e antes de qualquer reação desnecessária do leitor – gostaria de dar umas
palavrinhas, fingir um discurso ensaiado, lotar clichês de história e narrar
mentiras das mais verdadeiras.
Em primeiro lugar, (sempre) há
coisas que devem ser esquecidas por aqui – e talvez por toda parte –, como o
falatório popular ou até o que não é tão popular assim. Por exemplo: tem
mentiroso dizendo por aí que tudo o que vai, volta. É mentira. Na maioria das
vezes, o que perdemos nunca mais será nosso. Entendem? Nunca mais. Então é
melhor continuar seguindo em frente do que esperar o vento trazer de volta o
que quer que seja que está por aí. Não dê ouvidos também a quem diz que a voz
do povo é a voz de Deus.
Ele não pode ser tão estupidamente manipulável assim.
Não me ouçam tampouco! Parem
de me ler agora, se me acham louca. E se, por um acaso, prosseguirem, não
tratem de levar-me a sério por tanta prosa.
Não acreditem, pois, quando eu
disser que havia uma ponte, havia um elevador, havia um ônibus, havia um metrô.
Mas ninguém estava em lugar nenhum. E as pessoas caminhavam, corriam, dançavam,
mas insistiam em sempre retroceder. Não estou com elas, estou só – todos estão.
Nas cidades, todos estão sós. Na rua, em casa, no banheiro, fazendo ou não
alarde, todos estão sempre sós.
E ela permanecia lá, no meio
de todo mundo, em lugar nenhum, completamente só. Ela, a garota de quem estamos
falando, que não foi apresentada, que não foi introduzida, que apareceu de
surpresa nessa história. Das pessoas que no mundo sabe muita coisa, ela não era
uma; mas ela sabia, como sabe uma águia que enxerga longe, que ele estava lá. O
Príncipe. Não “lá” em seu castelo, mas em todos os lugares. Na padaria, no dinheiro, no mercado,
em casa, na rua, na TV... Oh, o príncipe que determinava o que era verdade.
UMA
NOTA IMPORTANTE ANTES QUE EU CONTINUE:
As
pessoas que fingem ser o que não
são geralmente o fazem porque são
forçadas a cometer esse ato atroz que é
assassinar a si mesmo.
E depois de tanto falar ainda
nem comecei, vejam só! Mas não enganei o leitor – seria injusta esta afirmação
–, afinal avisei que leriam um conto apenas quando eu terminasse. E acho que já
terminei, embora possa ter uma recaída e recomeçar com o falatório.
Pois apresento-lhes agora um
conto de réis!
Não, enganei-me. Um conto de
reis! Um verdadeiro, um real. Real no sentido de fatídico e monárquico, quero
dizer. No sentido de dinheiro também, mas aí já é outra coisa.
Como disse, havia uma menina.
E lá vinha ela, com seus pés descalços, suas pernas cinzentas devido à poeira,
os dentes tortos porque – segundo a mãe – quando era pequena tivera medo de
arrancar os de leite; tinha as unhas sujas, os cabelos crespos, a testa em
forma de interrogação e era muito, muito gorda. Andava para lá e para cá, despenteada,
desmazelada, comendo alguma coisa ou chorando de solidão.
Mas um dia, um belo dia de
outono, chegou. Não que seja muita coisa outono no Brasil, onde só são
acentuados inverno e verão. Mas era outono, de qualquer forma, e algumas folhas
caíam, outras não, a depender da árvore. Não havia muitas árvores, também, a
não ser nas praças mal cuidadas onde os meninos jogavam bola – e também “ela”,
às vezes. A garota. Andava com seus pés descalços como de costume, carregando
uma sacola de pães e comendo um no caminho de volta para casa.
E agora o leitor deve estar se
perguntando: que tipo de história é essa? Onde está o glamour, a beleza, a
altivez, a nobreza? Pois acabei de fazer uma rima, e quando rimo é como se
sorrisse escrevendo.
A feiúra não estava na garota.
Estava no Príncipe.
E não é que ele a encontrou?
No meio da multidão, a avistou enquanto desfilava pela cidade em um feriado
nacional, ostentando algum momento histórico do qual nunca participou.
Focalizou bem seu rosto, suas vestes, seu corpo e então guardou sua imagem.
Procurou-a pouco tempo depois, em sua casa, e disse:
— Preciso de você!
— Para quê? — perguntou ela,
confusa. Por que alguém precisaria de mim?
— Para mudar de ideia.
E quem nesse mundo não obedece
ao Príncipe? Eu mesma, a narradora, que não faço parte da história, obedeço a
ele. Um ultraje, mas prossigamos.
Ele a levou a seu palácio e
mandou que a olhassem bem. Pessoas esquisitas e espalhafatosa prostraram-se ao
redor dela, torcendo o nariz.
— Odeio quando ele resolve
mudar de ideia — a garota ouve uma delas sussurrar para a outra.
— Não quero que mudem nada
nela – disse ele, calmamente, e se retirou; sua mão invisível, porém, pairava
ali, manuseando tudo.
E as pessoas então começaram a
trabalhar. Não na garota, mas em si mesmas. Encrespavam o cabelo, despiam os
sapatos, sujavam as pernas, colocavam vestidos menores que seu tamanho original
(porque era isso o que a menina vestia) e enquanto isso discutiam sobre um
regime de engorda.
Pra quem não sabe, é assim que
são criados os padrões de beleza.
Demorou pouco mais uma semana
para que aquelas pessoas no palácio engordassem. Seus cabelos estavam mais
crespos e estavam até contentes com a ideia de não ter que penteá-los. Quando
viam uma moça com os seios maiores que a barriga – que horror! – sugeriam logo
um bom nutricionista para que resolvesse seu problema de peso.
A princípio, apenas as pessoas
do palácio estavam se vestindo assim. O próprio Príncipe aderiu a moda,
alegando que era mais agradável do que a antiga, na qual tinha de pentear os
cabelos. Com o tempo, com as transmissões de TV sobre a vida dos famosos, as
pessoas foram vendo como estavam se vestindo. A primeira coisa que passou pela
cabeça deles, é claro, era de que não gostavam do modelito. Então vinha um repórter,
um comentarista, um critico de moda.
Ele dizia:
— Nossa, que ousadia!
E o público aclamava. Como
disse, não é possível que a voz do povo seja a voz de Deus. O povo é que gosta
de criar essa fantasia para ter uma ilusão, para se sentir especial, para
pensar que tem o poder. Mas, como também já disse, quem é obrigado a ser o que
não é acaba por matar a si mesmo.
E foi um genocídio! Uma a uma,
as pessoas eram forçadas a se matar. Se eram magras, se gostavam de calçados,
se tinham cabelos lisos e sedosos, se fossem o que fossem, fariam o possível
para remediar esse mal. Matavam-se, porque era mais bonito assim. Por todo
lado, viam-se anúncios, propagandas, todo tipo de armas a serem entregues às
pessoas para que pudessem ferir-se.
“Gordinha é o novo sexy”, dizia um outdoor. E as magrinhas se
matavam por não serem iguais.
A industria alimentícia era a
que lucrava; e de cirurgias plásticas, afinal quem quer ter o seio maior que a
barriga?
E em algum lugar, alguém
suspirava:
Montesquieu, por que morreu?
Érica Prado tem 16 anos, pretende cursar história, ouve metal e reclamações o tempo todo. Gosta de coisas fáceis tipo miojo e, portanto, não gosta da vida. Não, você não pode simplesmente gostar dos dois. |