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sábado, 25 de agosto de 2012

De Johnny a Humbert





O escritor ainda escreve e o menino ainda não bebe.

Os dedos digitam rápidos na máquina de escrever, relatando o passado ao lado daquele amigo que por anos foi seu companheiro de alma, mas agora só o visita periodicamente, atrapalhando suas memórias a fluírem para o papel envelhecido.

- Sente-se, Johnny, já não está alto o bastante para a idade? - Argumentou o mais velho, que entre aquelas paredes era chamado de Humbert, diferente do nome em que era estampado nos livros sujos que uma editora pequena publicava.

- E você, não trabalha demais para a idade? - Perguntou o menino-quase-homem, que com seus dezesseis anos já sabia discordar daquele que tinha visto muitas coisas para deixá-las presas em sua memória.
- Escrever não é só um trabalho, John, é uma maneira de vida.

- Você às vezes é literário demais, já lhe disseram isso? - Comentou com a voz perdida que sempre usava para irritar o amigo que teimava em ter as letras como suas principais companheiras.

- Já. Desde o tempo em que essa casa velha era somente uma casa. - Riu da própria frase, vendo o amigo cair nas próprias memórias e não recordar daquele casarão antigo em toda sua beleza. Johnny tinha conhecido aquela casa já daquela forma, com as paredes descascando, os vidros quebrados e um pequeno leitor devorando livros como a morte devora almas.

 - Eu não me lembro dessa casa nova, somente lembro-me de você lendo compulsivamente os livros que um dia foram do seu avô em um quarto com goteiras e infiltrações. - Despejou o menino suas memórias para o homem literário demais, que ouvia atentamente sem conseguir digitar uma letra sobre o papel que esperava ansioso suas memórias serem ali gravadas.

- E eu me lembro de você muito mais novo do que eu, largando o carrinho de rolimã para ouvir vinis antigos comigo.

Johnny poderia tentar modificar em sua mente aquela cena, mas seria errado demais não recordar com perfeição as cenas que ele e Humbert viveram entre os muros envelhecidos daquela casa arruinada que serviu de palco para as aventuras de um pequeno leitor e um pequeno menino.

O barulho da máquina de escrever voltou a assombrar o ambiente e o garoto Johnny não ousaria quebrar aquele som de palavras sendo escritas, criando uma história tão decadente quanto o passado do escritor que só parava para fumar seu cigarro de canela e observar o melhor amigo, agora mais um visitante, a pisar no mármore sujo da casa que um dia teve sua glória.

- Ouça John, nunca seja tão idiota quanto eu para vender a única coisa que te faz feliz a qualquer um que oferecer uns poucos centavos. - Começou a falar o escritor, oferecendo o cigarro para o menino que curioso o pegou em seus dedos, mas não tragou. - Eu antes escrevia para sentir-me vivo; importante, me destacar na multidão que sempre quis me apunhalar e me chamar de estranho, menos você, é claro.

- Eu também fui esquecido e renegado, Humbert. Mas você e o violão conseguiram me salvar, mesmo que agora eu não me recorde de um mísero acorde de “Strawberry Fields Forever”, o hino mais estranho que um menino de nove anos poderia ter. - Falou o garoto, envolvendo um cigarro pela primeira vez entre seus lábios vermelhos de dezesseis anos.

- Você teve a música, mas foi mais idiota ou esperto do que eu e a abandonou. Eu continuei entre versos, prosa e metáforas. Minha salvação me desgraçou, John. Minha virtude se tornou um vício mais maldito do que esse cigarro que dividimos! Escrever não é simplesmente despejar memórias imutáveis que nunca aconteceram em um papel amarelado. É uma benção que um dia te colocará no fundo do seu próprio poço, onde o único caminho é para baixo, pois ir contra ela seria a verdadeira insanidade. - Quando acabou de falar, Humbert arfava, os dedos tremiam e os lábios curvavam-se para o cigarro que tinha acabado de furtar dos lábios de um menino desacostumado com o fumo.

Johnny permaneceu calado, analisando as falas que poderiam sair dos seus lábios, mas a única coisa que conseguiu fazer foi roubar o cigarro do mais velho e voltar a fumar com a tosse atrapalhando-o a conquistar um novo vício.

 - Se você não tivesse sido um ávido leitor, não teria esse pecado fantasiado de virtude. - Comentou o ex-músico com o gosto do cigarro entre seus dentes brancos.

- Não pense em como as coisas deveriam ter sido, John. Sem as palavras eu não seria nada, nem esse maltrapilho que sou hoje. Foram elas que me trouxeram até aqui e isso eu não posso negar.

- Eu nunca te pediria isso, Humbert.

- Você não, mas talvez o resto do mundo.

O silêncio voltou para ser novamente quebrado pelo som das palavras sendo escritas.

E quando anoiteceu, Johnny voltou para distância que os separavam, deixando um escritor com todas as suas máculas e um passado que sempre o perseguiria.

Pois entre os muros daquela casa velha, a única coisa que ficaria de pé seriam as memórias eternizadas em palavras. De Johnny e Humbert.
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