O escritor ainda
escreve e o menino ainda não bebe.
Os dedos digitam
rápidos na máquina de escrever, relatando o passado ao lado daquele amigo que
por anos foi seu companheiro de alma, mas agora só o visita periodicamente,
atrapalhando suas memórias a fluírem para o papel envelhecido.
- Sente-se,
Johnny, já não está alto o bastante para a idade? - Argumentou o mais velho,
que entre aquelas paredes era chamado de Humbert, diferente do nome em que era
estampado nos livros sujos que uma editora pequena publicava.
- E você, não
trabalha demais para a idade? - Perguntou o menino-quase-homem,
que com seus dezesseis anos já sabia discordar daquele que tinha visto muitas
coisas para deixá-las presas em sua memória.
- Escrever não é
só um trabalho, John, é uma maneira de vida.
- Você às vezes
é literário demais, já lhe disseram isso? - Comentou com a voz perdida que
sempre usava para irritar o amigo que teimava em ter as letras como suas
principais companheiras.
- Já. Desde o
tempo em que essa casa velha era somente uma casa. - Riu da própria frase,
vendo o amigo cair nas próprias memórias e não recordar daquele casarão antigo
em toda sua beleza. Johnny tinha conhecido aquela casa já daquela forma, com as
paredes descascando, os vidros quebrados e um pequeno leitor devorando livros
como a morte devora almas.
- Eu não me lembro dessa casa nova, somente lembro-me
de você lendo compulsivamente os livros que um dia foram do seu avô em um
quarto com goteiras e infiltrações. - Despejou o menino suas memórias para o
homem literário demais, que ouvia atentamente sem conseguir digitar uma letra
sobre o papel que esperava ansioso suas memórias serem ali gravadas.
- E eu me lembro de você muito mais novo do
que eu, largando o carrinho de rolimã para ouvir vinis antigos comigo.
Johnny poderia
tentar modificar em sua mente aquela cena, mas seria errado demais não recordar
com perfeição as cenas que ele e Humbert viveram entre os muros envelhecidos
daquela casa arruinada que serviu de palco para as aventuras de um pequeno
leitor e um pequeno menino.
O barulho da
máquina de escrever voltou a assombrar o ambiente e o garoto Johnny não ousaria
quebrar aquele som de palavras sendo escritas, criando uma história tão
decadente quanto o passado do escritor que só parava para fumar seu cigarro de
canela e observar o melhor amigo, agora mais um visitante, a pisar no mármore
sujo da casa que um dia teve sua glória.
- Ouça John,
nunca seja tão idiota quanto eu para vender a única coisa que te faz feliz a
qualquer um que oferecer uns poucos centavos. - Começou a falar o escritor,
oferecendo o cigarro para o menino que curioso o pegou em seus dedos, mas não
tragou. - Eu antes escrevia para sentir-me vivo; importante, me destacar na
multidão que sempre quis me apunhalar e me chamar de estranho, menos você, é
claro.
- Eu também fui esquecido e renegado,
Humbert. Mas você e o violão conseguiram me salvar, mesmo que agora eu não me
recorde de um mísero acorde de “Strawberry
Fields Forever”, o hino mais estranho que um menino de nove anos poderia
ter. - Falou o garoto, envolvendo um cigarro pela primeira vez entre seus
lábios vermelhos de dezesseis anos.
- Você teve a
música, mas foi mais idiota ou esperto do que eu e a abandonou. Eu continuei
entre versos, prosa e metáforas. Minha salvação me desgraçou, John. Minha
virtude se tornou um vício mais maldito do que esse cigarro que dividimos!
Escrever não é simplesmente despejar memórias imutáveis que nunca aconteceram
em um papel amarelado. É uma benção que um dia te colocará no fundo do seu
próprio poço, onde o único caminho é para baixo, pois ir contra ela seria a
verdadeira insanidade. - Quando acabou de falar, Humbert arfava, os dedos
tremiam e os lábios curvavam-se para o cigarro que tinha acabado de furtar dos
lábios de um menino desacostumado com o fumo.
Johnny
permaneceu calado, analisando as falas que poderiam sair dos seus lábios, mas a
única coisa que conseguiu fazer foi roubar o cigarro do mais velho e voltar a
fumar com a tosse atrapalhando-o a conquistar um novo vício.
- Se você não tivesse sido um ávido leitor,
não teria esse pecado fantasiado de virtude. - Comentou o ex-músico com o gosto
do cigarro entre seus dentes brancos.
- Não pense em
como as coisas deveriam ter sido, John. Sem as palavras eu não seria nada, nem
esse maltrapilho que sou hoje. Foram elas que me trouxeram até aqui e isso eu
não posso negar.
- Eu nunca te pediria isso, Humbert.
- Você não, mas talvez o resto do mundo.
O silêncio voltou para ser novamente
quebrado pelo som das palavras sendo escritas.
E quando
anoiteceu, Johnny voltou para distância que os separavam, deixando um escritor
com todas as suas máculas e um passado que sempre o perseguiria.
Pois entre os muros daquela casa velha, a
única coisa que ficaria de pé seriam as memórias eternizadas em palavras. De
Johnny e Humbert.