A primeira
tragada o fez tossir; a segunda o libertou.
Deixou-se levar
pela fumaça que brincava ao seu redor – o cheiro não agradava;
cigarro-sem-sabor; cigarro-de-alguém-que-não-se-importa-mais, pensou, mesmo não
sabendo com o quê não deveria mais se importar. Talvez com ele mesmo, mas,
antes que a resposta fosse concluída, tragou mais uma vez. Liberdade para
dentro do corpo e depois espiralada para o mundo, agora era assim que Amaro
observava as coisas.
Dentro dele
vivia essa vontade de libertar-se; de abrir as próprias asas para o céu que
quisesse e não somente o que a mãe coloria em tons de ciano e nuvens brancas.
Amaro queria o próprio céu – mesmo que
nem soubesse voar. Do alto dos seus dezessete anos, Amaro tornou-se livre
com a segunda tragada em um cigarro furtado da bolsa de uma senhora qualquer.
Cigarro forte, de filtro vermelho e insípido. Talvez ele preferisse os de
menta, os garotos da escola sempre comentavam dos mentolados que refrescavam o
céu da boca, deixando-os preparados para os beijos das menininhas de saias
pregueadas curtas demais para uniforme escolar. Amaro desconfiava que elas
vestiam as mesmas que receberam quando tinham doze anos, só para provocar.
Meninas de dezesseis com saias curtas demais sempre seriam uma tentação.
Assim como o
cigarro.
Brincava com o
fumo entre o polegar e o indicador, segurando-o com força para não escapar de
seus dedos, trêmulos por estar dentro do banheiro da escola com um cigarro
acesso. Cigarro-de-alguém-que-não-se-importa-mais,
retomou de volta seu pensamento leviano e mal trabalhado e realmente não quis
importar-se. E quando fosse pego saberia o que fazer, fumaria o cigarro até o
fim, deixando o zelador esperando-o na porta do banheiro com olhos vorazes e
indignação. Na sua mente a cena seria perfeita: o primogênito de sete meninas
loiras, dentes brancos, corpos esguios e boa educação era um transgressor! Um
desvairado que matava aulas trancado no banheiro com seu fumo furtado. E todos
se perguntariam o que aconteceu para o menino perfeitinho de jeans bem lavados
e camisas engomadas que levava as irmãs para escola. Onde ele vive agora?
Olhou-se no
espelho. Procurou o antigo Amaro e encontrou-o ainda vivo no fundo dos seus
olhos azuis. Riu da própria aparência metódica e arrumada. Nos cabelos loiros mantinha
o mesmo penteado que a mãe ensinara quando criança ainda no tempo em que o sofá
da sala era o marrom-desbotado-que-todos-podiam-pular-em-cima. Despenteou-se
com o cigarro entre os lábios, desprendendo-se da máscara de menino doce que
usara tantos anos. Porque no fundo Amaro não era doce. Amaro era amargo como o
tabaco que fumava displicentemente. Nele
não existia o agridoce comum a algumas pessoas (como Morgana, uma de suas
irmãs), ele era a amargura desconfortável que causa repudia – mas que mesmo
assim todos carregam nos lábios rachados e empalidecidos. Era o que nasceu para
ser.
Amargo Amaro.
Os olhos azuis transfiguravam-se
em apatia. Duas piscinas fundas demais para uma construção superficial. Ora,
ele ainda era um clichê de cabelos desgrenhados e barra de jeans dobradas. Precisava de mais. Queria a insegurança
do mundo, os perigos, a violências e as nuances em preto, branco e cinza.
Almejava todos os acordes que não conhecia e todas as canções que pudesse
lembrar. Queria-se em tudo, mesmo sendo nada.
E o azul apático
desafiando-o pelo espelho.
Era um menino
comum esse Amaro olhando-se fixamente. Era um menino incomum esse Amaro que
fumava cigarros furtados. Era quase um homem, esse Amaro. De jeans
perfeitamente passados e camisa branca de linho. Quase não era ele, esse Amaro.
O de cabelo desgrenhado era ele – pelo menos uma parte. A outra metade ainda estava
trancafiada dentro do corpo de normalidade e vamos-seguir-as-regras-do-mundo.
Tornar-se-ia o verdadeiro Amaro quando conhecesse as bebidas, as bandas, o
violão e o aroma de fumaça e antiga misturada com a colônia que o pai não usava
mais. Tornar-se-ia mais amargo.
A última tragada
o matou; o apagar do cigarro o renasceu.